Um pequeno incidente pessoal, sem maiores conseqüências, vai servir como um pretexto para se verificar um certo tipo de funcionamento da imprensa cotidiana. Em fins de maio, fui contactado por telefone por um repórter do Jornal do Brasil para que dissesse alguma coisa sobre Chico Buarque, cujo sexagésimo aniversário seria comemorado (como efetivamente o foi) em 27 de junho. O jornal estava preparando um caderno especial sobre o compositor e escritor, que é sem dúvida uma das poucas unanimidades nacionais.
Sou fã confesso, quase de carteirinha, de Chico Buarque. Admiti isto logo de saída ao repórter e, em seguida, arrisquei-me a uma pequena análise de sua obra musical, desde A banda (que, na época do surgimento, me fez muito lembrar do poeta francês Jacques Prevert) até as canções mais recentes, de letras inesquecíveis, algumas das quais evocavam a preferência dos nossos poetas do Arcadismo pelas proparoxítonas. Enfim, até mesmo de uma ‘reencarnação’ musical de Noel Rosa falei.
Mas, garantido pela posição de admirador inconteste, permiti-me dizer do que não gostava tanto: a voz algo anasalada do Chico-cantor e a escrita de Estorvo, que não me apeteceu terminar.
Que importância tem isso?
Pois bem, o tal caderno do JB (13/5/2004), numa lista de 60 declarações sobre a efeméride (intitulada 60 pedaços de mim) resumia assim toda a minha fala: ‘‘Chico é um sujeito de esquerda, mas que mantém uma atitude discreta’, diz. ‘Só li Estorvo até a página 10, me enchi logo. Também não gosto muito dele cantando, acho a voz anasalada, prefiro o João Bosco’, completa. Sodré às vezes crítica, mas é fã: ‘Votaria nele para membro da ABL’’.
Ora, objetivamente falando, eu disse realmente tudo aquilo, mas ao mesmo tempo não disse. Bem entendido: retirando as pequenas frases dos enunciados maiores e separando-as do contexto da enunciação (em que a entonação laudatória fazia das críticas meros complementos secundários), o texto jornalístico construiu uma realidade diferente da original. O resumo publicado passou algo absolutamente não pretendido pelo entrevistado, ou seja, um amontoado de predicações negativas que pode significar tudo, menos a condição de ‘fã’.
Alguém poderá perguntar: que importância tem isso? O compositor não se incomodou, provavelmente disto não tomou sequer conhecimento, e nenhum de seus admiradores incontestes protestou. Além do mais, todo e qualquer consumidor de canções ou de personalidades públicas está democraticamente autorizado a dizer se gosta ou não do que ouve ou do que lê. Seria o caso, aliás, do cantor-compositor Lobão. Segundo a mesma matéria, ele não gosta da obra de Chico e, entre amigos, costumaria imitá-lo em tom de deboche.
Sob suspeição
O problema levantado aqui, porém, não é de gosto, não é de estética, mas de demonstração de como o jornalismo, em sua pressa ou em seu hábito crescente de pôr em segundo plano o conteúdo discursivo em favor de uma forma que pode ser tanto uma imagem figurativa quanto uma paginação atraente, acaba produzindo uma realidade própria, particular, mais palatável para si mesmo ou para o que julga ser o leitor. Do jeito que a matéria saiu, o entrevistado (eu mesmo) decididamente é averso a Chico Buarque. O problema é que a realidade é outra.
Não é difícil para o leitor de jornal especular sobre o que pode acontecer, mudando-se os assuntos e os contextos, com matérias maiores ou temáticas mais complexas. Não adianta culpar o repórter, porque se trata de todo um processo de produção, em que o profissional é engolido e digerido, a menos que se trate de um colunista com toda a autonomia de sua assinatura.
Seja como for, a consciência crescente dessas deformações midiáticas põe a imprensa em suspeição junto ao público mais advertido. Isto ajuda a explicar a reação de Paulinho da Viola, ao ser procurado para o mesmo assunto: ‘Eu não falo mais com a imprensa’. Explica o repórter que o cantor e compositor não aceitou o argumento de que era para um caderno especial sobre os 60 anos de Chico. ‘Eu sei, eu sei. Você me desculpa, mas eu não dou mais depoimento algum’.
Sábio Paulinho da Viola.
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Jornalista, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro