Foi exagerado o destaque dado pela imprensa carioca – assim como a conseqüente repercussão junto a alguns círculos – ao comentário do humorista Marcelo Madureira, do Casseta & Planeta, sobre Glauber Rocha. Antes de mais nada, é preciso deixar claro que a frase ‘Glauber Rocha é uma merda’ é metonímica: a enunciação visava à obra do cineasta. Depois, nunca é demais reiterar que as opiniões continuam a ser livres, até segunda ordem, numa conjuntura democrática.
Isto posto, vale indagar sobre as razões da importância atribuída àquela frase. Casseta & Planeta é um segmento do humor público cuja irreverência se pauta pelo besteirol, e não pela sutileza que pode ser apanágio de outros humoristas. Os ‘cassetas’ têm tornado públicas aquelas piadas que não costumavam ultrapassar os limites do privado devido a seu quantum de politicamente incorreto, senão de grosseria. Entre quatro paredes, muita gente ri daquilo que, em público, condenaria hipócrita e veementemente.
Glauber Rocha, em contrapartida, foi o inventor de uma linguagem fílmica capaz de dar uma boa medida da complexidade social do Brasil. Implicava uma estética de ruptura: o novo em matéria de cinema nacional era a produção de uma imagem alegórica – e indutora de reflexão – das nossas assimetrias econômicas, políticas e culturais. Mas não era obra ‘explicativa’ da realidade brasileira; era antes narrativa ‘aberta’, como a do romance pós-simbolista europeu (Kafka, Joyce, Virginia Woolf), que não explica o real, nem é por este explicado. Glauber era artista na obra e intelectual na vida pública.
‘Fatos construídos’
Para a geração que lhe foi contemporânea, o cinema brasileiro era ao mesmo tempo estético e político. Era o Cahiers du Cinéma debruçado sobre o subdesenvolvimento e o cangaço. Daí, o deslumbramento que Deus e o Diabo na terra do sol provocou e continua provocando sobre aquele tipo de consciência tocada pela diversidade cultural – quer pertença a jovens ou a ‘antigos’.
Isso não quer dizer que todos os filmes de Glauber tenham exercido ou exerçam o mesmo efeito de Deus e o Diabo. Ou, pelo menos, há aqui uma boa matéria para discussão. Parece-me compreensível que setores ponderáveis das novas gerações possam não assistir aos filmes de Glauber com os mesmos olhos dos ‘antigos’, do mesmo modo que, só obrigados por professores, os jovens lêem os clássicos da literatura brasileira. ‘Chato’ é a palavra-síntese dos julgamentos, e bem o sabem os professores dos diversos graus, estes heróis anônimos do incentivo à leitura.
Ora, Glauber Rocha é um clássico, pertence ao cânone da cinematografia nacional e internacional. A frase de Marcelo Madureira trouxe a público algo que, na esfera privada, se pode predicar da obra do cineasta. É certamente desabusada, não mais, porém, do que outras que sabemos correntes no humorismo besteirol do Casseta & Planeta.
Por que foi, então, levada a sério?
Possivelmente porque a imprensa decidiu criar um fato, inflando o alcance da frase. E a imprensa, como bem se sabe, acaba produzindo o seu público-leitor, que por sua vez age em conseqüência. Para o observador, a lição a ser tirada daí é que se deve prestar mais atenção a ‘fato construído’ pela mídia. Atualmente, há vários deles em andamento, com conseqüências mais sérias para a vida política do país. A respeito desses, diferentemente do caso de Glauber, vale a pergunta: a quem interessam?
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Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro