Friday, 18 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1310

Pelada com a mão no bolso

A mídia conservadora nacional está sendo obrigada a comer a frio as três grandes mentiras históricas que repetiu exaustivamente e que ao final está ficando provado que o contrário delas é que é o verdadeiro. Primeira, que consumo gera inflação; segunda, que é preciso amontoar riqueza para depois distribui-la; e terceira, que o mercado é um ente auto-sustentável, motor de equilíbrio, quando a realidade é puro desequilíbrio dinâmico dialético.

As incertezas que rondam os editoriais nas últimas semanas, quando se prolongam as discussões sobre se os juros devem cair ou não em face do perigo da inflação que está de volta, mostram o quanto seus autores desacreditam de suas próprias preces.

Estão ainda mais confusos com suas teses estapafúrdias sobre o livre mercado depois que o Banco Central dos Estados Unidos entrou em campo para acabar com a farra bancária que levou à bancarrota o sistema bancário internacional. Não consumada, porque o Estado socorreu.

As três grandes mentiras acabaram por mostrar que, por não existirem na prática mas apenas abstratamente na cabeça dos editorialistas, não possuem realmente utilidade. Se tudo que é útil é verdadeiro e se deixa de ser útil deixa de ser verdade, conforme formula Keynes, sintonizado com o utilitarismo, supra-sumo ideológico do capital, evidentemente a mídia nacional é uma mentira.

O Deus do extra-mercado

No primeiro caso, todo o poder midiático bateu firme sobre os encantos da acumulação capitalista que se transforma em sobreacumulação, e em seguida em crise de realização, como se esse processo fosse eterno em seu movimento cíclico auto-renovável, historicamente, para comprovar a impossibilidade da distribuição da renda.

Então, tinha que acumular até explodir em nova crise, sem se dar conta da necessidade de dividir para sobreviver. Social-democracia da boca para fora.

Os investimentos do governo Lula em programas sociais – tidos pela mídia não como estratégia econômica, mas mero assistencialismo – para bombar o consumo e gerar renda disponível para consumir/destruir a produção do sistema, mostraram-se tão eficientes como foram eficientes, por enquanto, o bombeamento sanguíneo que W. Bush deu no mercado sobreacumulado de riqueza, para evitar que a sobreacumulação de capital empoçado no sistema bancário fosse totalmente para o beleléu.

Trata-se, em essência, de um mesmo movimento do capital em processo de acumulação, no sentido de evitar que as sobreacumulações, que levam à deflação, como dizem os clássicos e os marxistas, destruam tudo. Como? Apelando para Deus. Não o do mercado, mas o do extra-mercado, o Estado, amaldiçoado pelo poder midiático enquanto mediador dos lucros do capital.

Bernanke salvou a pátria

W. Bush põe dinheiro em circulação para salvar os bancos, como para salvar, também, os capitalistas da guerra que, agora, querem atiçar o conflito bélico não na terra, mas nas estrelas. Economia de guerra keynesiana praticada desde Roosevelt e consolidado no pós-guerra, mas, agora, batendo biela por conta do excesso de dívida estatal, insiste em sobreviver porque é a sobrevida do capital.

Pelo menos a nova guerra no espaço fica longe das esquinas onde trafegam as famílias. Será?

O apelo bushiano aos países do leste para que entrem para a Otan, a fim de ganhar adeptos, de modo a escantear Putin, para ganhar a batalha na guerra das estrelas – o escudo anti-míssil ocidental para se proteger dos bombardeios orientais –, é a mesma sinalização que o Estado dá, com o seu capital emissor, para a continuidade dos investimentos gerais que puxam o sistema como um todo. A máquina não pode parar.

Na cabeça dos editorialistas nacionais, a realidade tinha petrificado no conceito do mercado livre, morto no crash de 1929. Foi preciso Tio Sam dar uma de general da propaganda da Net: dar bancada de martelo no cofrinho de Marcelinho. Ficavam, bestamente, arrogantemente, pregando os encantos do mercado. Ora, o mercado foi para os ares e se não fosse o Estado, que os neoliberais esquizofrênicos – por acreditarem nas suas próprias abstrações – condenam, estaria lascado, sem poder juntar os cacos espalhados na estratosfera. Celso Ming, domingo, no Estadão, reconhece que o deus Bernanke salvou a pátria.

Desajustes do capitalismo cêntrico

O capitalismo entraria numa buraqueira sem fim sem o Estado. O resultado seria a ressurreição violenta das ideologias agudamente antagônicas que jogariam a representação política do capital, a democracia parlamentar, no abismo das angústias, podendo, como já foi em outras ocasiões históricas, ser detonada. Neo-hitleres, neo-stalins, neo-mussolinis pintariam no pedaço global, revivendo a história em forma de farsa.

Os investimentos sociais lulistas são o que a mídia não consegue ver: instrumento de combate à sobreacumulação de capital que produz tanto inflação como deflação em escalas incontroláveis, requerendo, no limite, o socorro do poder estatal.

O que acontecia antes? Sobravam mercadorias. Os estoques altos levavam os empresários a chorarem no ombro do governo, pedindo mamadeira, desvalorização cambial. Era a fórmula de se livrarem dos estoques acumulados por falta de mercado interno, sacrificado pela ideologia delfinista-bancarista-militarista, que prosseguiu na Nova República, até a chegada de Lula ao poder. Subconsumismo crônico.

As desvalorizações cambiais inflacionárias aumentavam as exportações, mas traziam os desajustes estruturais que se agudizaram depois da crise monetária dos anos de 1980 ou por causa delas, algo produzido de fora para dentro, já que as crises monetárias são produtos dos desajustes do capitalismo cêntrico, que transfere, por meio da moeda, suas deformações para a periferia.

Insuficiência de consumo

O que fez Lula? Botou, para contrariedade incomprensível do poder midiático, inflexível politicamente, poder de compra no bolso dos esfomeados por meio do cartão de alimentação do Bolsa Escola. O que era estoque virou consumo interno. Não precisando desvalorizar mais, na escala em que se desvalorizava quando os estoques acumulavam, comprovou-se que distribuição de renda reduz o perigo de sobreacumulação de capital produtivo e especulativo, evitando violentas pressões inflacionárias para corrigir perigos deflacionários.

Se não precisa desvalorizar, claro, o dinheiro nacional vai valorizar, principalmente, se, historicamente, praticam-se no país juros altos. Os investimentos sociais não apenas combateram a tendência deflacionária, como descobriram o que já estava descoberto na prática do capitalismo norte-americano, europeu e asiático: o dinheiro caro compra barato, combatendo inflação.

O consumo ascensional da classe C é a expressão do combate à inflação, provocada pelas desvalorizações cambiais em forma de falsa solução para o processo deflacionário que acumulação de estoques produzia.

O aumento do consumo interno foi a negação da inflação gerada pela desvalorização cambial para salvar os empresários da praga da insuficiência crônica de consumo que o sistema capitalista produz em forma de sobreacumulação e destruição deflacionária.

Malthus tinha razão: o capitalismo, sob o impacto da ciência e da tecnologia, tende a elevar a oferta em relação à demanda. Por isso, a insuficiência do consumo interno gerada pela eficiência capitalista requer a ineficiência dos gastos do governo – dinheiro no cartão de alimentação – para gerar consumo sem aumentar a oferta.

Salário zero, lucro máximo

Cria-se, articuladamente, a escassez, diante da qual surge tensão necessária entre produção e consumo, cujo resultado é a alta dos preços e, lógico, dos lucros. Esse é o supra-sumo malthusiano nunca percebido pelo poder midiático tupiniquim.

Se o empresário vê condições de que isso ocorra, ou seja, que dê para ele vislumbrar a eficiência marginal do capital (lucro), como caracterizado pelo genial Keynes, ele renuncia à liquidez, acumulada sem trabalhar, no juro, a fim de ganhar ela na produção, se for convidativo. Caso contrário, não. O governo, que é o dono do sistema monetário capitalista pós-1929, pulsando o mercado mediante emissão monetária sem lastro, é aquele que produz, nos olhos dos empresários, essa eficiência marginal do capital.

O capitalismo pós-29, impulsionado pela moeda estatal inconversível, estabelece, conforme Keynes, que a única variável econômica verdadeiramente independente é a quantidade da oferta de dinheiro na economia sob responsabilidade do poder monetário estatal. Quando ele joga dinheiro na circulação cria, segundo Keynes, as quatro condições objetivas que levam os empresários a vislumbrarem a eficiência marginal do capital, os lucros: 1 – eleva os preços, 2 – perdoa as dívidas, 3 – reduz os juros e 4 – diminui os salários. O Estado, com a inflação, elimina os riscos. Como não renunciar à liquidez produzida pelos juros se a liquidez pode aumentar mediante o estímulo governamental?

Keynes, seguidor de Malthus, viu que alta de preços é melhor, para o capitalismo, do que o lucro obtido na exploração até que se consume o salário zero e o lucro máximo, como defendiam seus mestres marginalistas Pigou e Alfred Marshall, no ambiente que leva à deflação. A inflação, expressa em alta de preços, é menos dolorosa que o desemprego decorrente da inflação.

As mercadorias-dinheiro

Quem vai praticar a inflação? O governo, a ineficiência governamental malthusiana. Ele é o consumidor ineficiente que Malthus diz ser necessário para evitar as sobreacumulações e as deflações. A inflação aleija o salário enquanto aumenta o capital, mas a deflação mata tanto o salário quanto o capital. Escolha de Sofia.

Se W. Bush não tivesse seguido, agora, os conselhos de Malthus que Keynes copiou, o sistema capitalista teria falido. Assim como os bancos seriam comprados pelo preço de uma engraxada de sapato, os capitalistas da mídia estariam correndo, para onde, com suas dívidas e patrimônios desvalorizados mediante crise deflacionária? Para os bancos, que eles louvaram e louvam, mas que estariam quebrados, não fosse a mão estatal, ou pulariam no colo de lulinha paz e amor?

Se Lula não tivesse feito a mesma coisa que Bush faz com os banqueiros e capitalistas da guerra, jogando dinheiro nos cartões de crédito dos pobres, o capitalismo nacional estava numa fria, nesse momento em que o dólar despenca.

Grande parte dos dólares acumulados na bolsa do Tesouro, como garantia para evitar perigos iminentes, não foram alcançados prioritariamente pelos exportadores, mas pelo consumo interno, que evitou a acumulação de estoques e conseqüentemente a inflação decorrente de desvalorizações cambiais? O consumo interno é a causa, as exportações, o efeito.

As mercadorias-dinheiro entupiram, agora, na crise norte-americana, os bancos e caminharam para a deflação sem poder de circulação como as mercadorias-valor de uso/troca entupiram os armazéns sem consumo quando o mercado interno inexistia.

O utilitarismo cínico

O bloqueio da circulação monetária na via bancária, nas últimas semanas, tem na sobreacumulação de capital, que se desvaloriza na crise, a mesma origem do bloqueio produzido pelos estoques altos de mercadoria que pediam desvalorizações para tentarem sobreviver à custa do dinheiro do contribuinte. Mercadoria é dinheiro, dinheiro é mercadoria (Marx).

Se o Estado é o gerador do capital fictício, sem lastro, que salva o mercado da crise de sobreacumulação, como ficou comprovado na ação do Banco Central dos Estados Unidos, evidentemente, o Estado é o capital. O capitalismo está dominado pela ficção monetária. O Estado, como destaca Hegel, sopra no dinheiro seu próprio poder. E os neoliberais estavam brincando de fazer editoriais.

O governo veio para salvar, assim como Lula vem salvando os empresários, que antes quebravam quando os estoques se acumulavam por falta de mercado interno e o governo, endividado, não podia atendê-los na escala necessária para impulsionar as exportações, via desvalorização cambial.

Está se comprovando que as teses capitalistas somente continuarão ou suportarão a sobrevivência se aceitarem sua rendição ao Estado, pois na abstração dos seus propagandistas, que se perderam em infindáveis editoriais, predomina, apenas, a alienada palhaçada sem graça.

Sequer utilidade possui o velho discurso midiático. É a falência do utilitarismo cínico inglês criado no século 19 e exportado mundo editorial afora. Agora, como reconhece Martin Wolf, do Financial Times, o drama ficou explícito. A mídia está pelada com a mão no bolso. Sensacional.

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Jornalista, Brasília, DF