Foi uma boa notícia a venda dos 13,8% da holding do Grupo Abril ao Capital International Inc., do Capital Group, o terceiro maior administrador de fundos dos EUA.
Pelas seguintes razões:
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Até agora só apareceram duas soluções para a crise da mídia brasileira e ambas são calamitosas: o Pró-Mídia, linha de crédito especial do BNDES, que fatalmente submeterá os tomadores a algum tipo de sujeição aos interesses do governo federal; e o sinal verde para os predadores, que já colocaram parte de nossa imprensa diária e hebdomadária no regime do vale-tudo e da chantagem.**
A venda de parte das ações de um dos gigantes da mídia latino-americana é o primeiro resultado da alteração do Artigo 222 da Constituição. Aprovada há dois anos, visava a capitalização das empresas de mídia brasileiras e, sobretudo, a transformação dos arcaicos grupos familiares em sociedades abertas e transparentes. Este Observatório foi um dos deflagradores da discussão a respeito da modernização do Artigo 222 [ver abaixo seleção de links para algumas de nossas matérias]**
No anúncio da venda das ações à Capital Group, o presidente do Conselho de Administração da Abril, Roberto Civita, declarou que a operação abre caminho para uma futura abertura de capital das empresas do grupo.**
Quando esta abertura se materializar, estará iniciado o processo de modernização institucional das empresas de mídia brasileira, até agora na Idade da Pedra se comparadas aos demais segmentos empresariais, principalmente seus grandes anunciantes.**
Igualmente auspicioso é o fato de o novo sócio da Abril ser um administrador de fundos e, não, uma multinacional de mídia ou grupo financeiro. Fundos de pensão ou de investimento são considerados ‘neutros’ em matéria política, movidos unicamente pelo interesse de proporcionar lucro aos aplicadores. Não lhes interessam outros dividendos.Quando fundos brasileiros inspirados no Capital Group resolverem investir seus recursos em projetos de mídia saudáveis serão finalmente lacradas as tetas oficiais e desativadas as parcerias entre veículos e governos (ou grupos políticos) que tantos malefícios causam à imagem da imprensa brasileira. Não apenas na imprensa regional, mas também na imprensa do eixo Rio-S.Paulo, há veículos mantidos artificialmente com a única finalidade de servir aos interesses políticos e eleitorais dos proprietários.
Incubadora de talentos
O lado preocupante da operação pioneira empreendida pela Abril é a premissa adotada pelo patronato da mídia brasileira: os ganhos de produtividade só podem ser obtidos à custa de perdas de qualidade. O que se designa como ‘processo de enxugamento’ das redações, iniciado há cerca de 10 anos, produziu o mais formidável rebaixamento qualitativo na história da imprensa brasileira.
Compare-se uma grande revista ou um grande jornal de agora a seu equivalente editado há uma década. O título e o visual podem ser os mesmos, a empresa é a mesma, os acionistas e executivos, idem, porém banalizou-se a pauta, valorizou-se o picadinho, caiu o espaço editorial, caiu a densidade da informação e a qualidade do texto. Principalmente, substituiu-se uma geração de profissionais com cerca de 40 anos de idade e 20 de experiência por jovens talentosos, mas contratados pela dupla capacidade de curvar-se ao ditado dos administradores e publicitários desprovidos de qualquer compromisso com o jornalismo e de aceitar salários que os predecessores teriam considerado indecentes.
Até há poucos anos a imprensa brasileira funcionava como celeiro e incubadora de talentos para o mundo intelectual, empresarial, político e até forense (o atual presidente do STJ, Edson Vidigal fez carreira em importantes redações). A imprensa era uma das usinas das elites pensantes, tanto no valor do que produzia como na qualidade dos seus recursos humanos. Seus remanescentes continuam como estrelas de primeira grandeza, porém a renovação veio arrevesada.
Mídia impressa esquecida
O jornalismo de hoje, por força das injunções dos ‘ganhos de produtividade’, parece fadado a especializar-se na fabricação de futuros promotores de eventos, assessores de comunicação etc. etc., profissionais certamente necessários, mas não essenciais ao processo de enriquecimento cultural de uma sociedade desenvolvida.
O auspicioso anúncio do Grupo Abril em 7 de julho praticamente coincide com a divulgação de um estudo da PwC (PricewaterhouseCoopers) no dia 29 de junho, no qual é previsto um crescimento global de 6,3% para o setor de mídia e entretenimento nos próximos quatro anos. O Globo publicou-o em primeira mão (30/6, página 30), a Folha repicou dias depois na capa da Ilustrada (11/7) [ver os textos na rubrica Entre Aspas]
Para a América Latina, a previsão da PwC aponta para um aumento maior do que a média (6,5%) sobretudo no campo da TV por assinatura (cujo crescimento deverá ser de 9,2%).
O que chama a atenção neste prognóstico aparentemente otimista é o enfoque: para a PwC, mídia significa mídia eletrônica ou mídia-diversão (TV, cinema, DVD, videogames). As referências à internet estão associadas aos games. Não há menções à mídia impressa. No tocante aos livros, a Folha pescou números nada entusiásticos: o crescimento global para 2004 será de míseros 0,1%, e o estimado até 2008, de 2,8%.
Lucros e inteligência
Na realidade, os números estimulantes escondem um quadro desalentador: o jornalismo e a produção de informações são irrelevantes ou, na melhor das hipóteses, marginais. A tal ‘indústria cultural’ tende a ser uma indústria baseada em imagens, onde a leitura desempenha papel insignificante.
O que nos remete novamente ao desgaste qualitativo da mídia impressa brasileira: se nos EUA, na Europa e no Japão a expansão da mídia-diversão poderá ser equilibrada pela manutenção do lastro de conteúdo da mídia impressa, o que acontecerá no Brasil, cujos jornais e revistas, com raríssimas exceções, escolheram um processo de rebaixamento qualitativo?
Como contrabalançar a cultura dos videogames se os ‘ganhos de produtividade’ nas redações impõem tantas perdas de teor nas suas linhas de montagem? De que maneira poderá um grande veículo brasileiro oferecer uma fatia de seu capital a um fundo de pensões se os executivos deste fundo preferem informar-se em revistas ou jornais importados?
Empresas competitivas também podem oferecer um jornalismo competente. Ganhos de produtividade também podem ocorrer sem desperdício de inteligência.