A questão que mobiliza a grande mídia sobre se o governo deve aumentar ou diminuir seus gastos relativamente ao crescimento do PIB, debatida na entrevista do presidente Lula ao Globo, no domingo, 25/11, está no centro do drama brasileiro atual em que a relação entre o Estado e o mercado é marcada por tensos debates.
Se Getúlio Vargas fosse vivo e lesse os editoriais midiáticos atuais, repetiria o que disse durante sua época, quando optou por renovar o capitalismo brasileiro selvagem escravista do século 19, aumentando os gastos sociais acima do crescimento do PIB, introduzindo conquistas trabalhistas que mobilizavam trabalhadores organizados na Europa e nos Estados Unidos para lutar pelo socialismo: ‘Estou tentando salvar esses capitalistas burros brasileiros e eles estão querendo me destruir.’
O ministro da Justiça, Chico Campos, nacionalista-fascista, gênio jurídico-dialético, destacou a Getúlio que o capitalismo somente sobreviveria se abrisse às conquistas sociais. Elas é que teriam força para criar o mercado interno, via salários, para o consumo das mercadorias das indústrias nascentes. Destacou: ou o sistema se abria para as reformas, entregando os anéis, ou então os dedos iriam para o beleléu. Joaquim Nabuco desenvolveu a mesma lógica para defender o abolicionismo.
A sobreacumulação de capital
O gasto social acima do crescimento do PIB, naquela ocasião, foi fundamental para criar as demandas necessárias ao desenvolvimento capitalista brasileiro. Getúlio salvou as empresas, abaladas pela crise de 1929, ao mandar queimar café para sustentar seu preço, subsidiando os fazendeiros. Keynesianismo financeiro expresso em injeção de dinheiro público na veia privada em crise.
Oswaldo Aranha, ministro da Fazenda, embaixador brasileiro nos Estados Unidos, líder político da revolução de 1930, disse que o presidente Franklin Delano Roosevelt, dos Estados Unidos, elogiou a solução adotada pelo presidente brasileiro, cuidando também de aplicá-la nos Estados Unidos. Para combater o desemprego, mandou plantar cactos no deserto do Tennessee, elevando os gastos do governo para além do crescimento do PIB. Evitou, usando instrumentos keynesianos, o avanço, nos Estados Unidos, do pensamento socialista.
Os trabalhadores, no tempo de Getúlio, estavam vindo do campo para formar o mercado interno a ser impulsionado pelos salários, pois a escravidão não interessava mais ao capitalismo na fase em que o consumo se diversifica, demandando renda interna salarial para promover a sobreacumulação de capital, favorecida pelo aumento da oferta de mão-de-obra, que reduz seu preço no mercado de trabalho, aumentando os lucros.
Pensamento nacionalista-estatal
Os capitalistas nacionais, subordinados à economia colonial, exploradora da mão-de-obra escrava, resistiam aos aumentos de gastos sociais acima do PIB, patrocinados pela reforma social getulista como alternativa capitalista para ajudar a formar o mercado interno. Burrice total.
Sem a ação varguista, a moeda entraria em colapso, com a derruba dos preços do café, e a revolução social, na ocasião, influenciada pelo socialismo soviético em ascensão, prosperaria irresistivelmente.
Os gastos sociais acima do crescimento do PIB criaram base de sustentação econômica e ideológica do capitalismo sobre o socialismo, sob pensamento nacionalista estatal. Caso contrário, a crise de 1929 não teria sido ultrapassada, nem no Brasil, nem nos Estados Unidos, nem em lugar algum do planeta Terra.
Produção e consumo
Transponha-se a situação para os diais atuais. Os gastos do governo Lula, como destacam os comentaristas sabichões da grande mídia, estão avançando mais que o crescimento do PIB – apenas o PIB formal, ou também o PIB informal?
Com que objetivo ocorreria tal desbalanceamento? Apenas para jogar dinheiro fora, ou forçado pela incapacidade de o capitalismo do laissez faire expandir o mercado consumidor, sendo necessária a demão estatal?
Como o dinamismo do livre mercado, ao longo dos governos neorepublicanos-neoliberais, subordinados ao Consenso de Washington, não se sustentou mediante a terapia do FMI, o governo, mesmo endividado até o pescoço, teve que – inicialmente sob FHC, depois, mais intensamente, sob Lula – fazer o mesmo que Getúlio fez no seu tempo: criar demanda para a oferta e a oferta para a demanda, via aumento dos gastos governamentais acima do crescimento do PIB.
Sem isso, a emergência de um Hugo Chávez nos trópicos brasileiros teria sido inevitável, dadas as contradições entre produção e consumo, que entrariam em colapso na Nova República ciceroneada pelo FMI e credores.
Economia bi-setorial
Em Princípios da economia política, o genial Malthus, ao fazer um balanço do que considera positivo e negativo em Adam Smith, destaca que o mal do capitalismo, sob impacto do desenvolvimento da ciência e da tecnologia, impulsionadoras da produtividade e competitividade, é que a oferta aumenta relativamente à demanda, que sofre os prejuízos decorrentes do processo natural de sobreacumulação do capital, entrando em deflação.
Somente avançando mais que o crescimento do PIB, os gastos do governo, que ele chama de gastos não-produtivos – designação que considera superior à de Smith, de gastos improdutivos – conseguem criar o consumo de mercadorias não-produtivas – guerras, contração de funcionários públicos, expansão da máquina administrativa, construção de estradas, pontes, viadutos etc. – que, por sua vez, geram renda para sustentar a economia de mercado.
Keynes, quase um século e meio depois de Malthus, percebeu que era necessário abandonar os marginalistas-equilibristas do século 19, capitaneados pelo seu guru Alfred Marshall, cultuadores do que denominou ‘relíquia bárbara’, o padrão-ouro, que sustentava a economia de mercado, bi-setorial, composta dos setores produtores de bens de produção (D1) e de bens de consumo (D2).
A era da economia de serviços seria gestada pelo novo padrão monetário que iria entrar em cena no século 20, bancado pela moeda estatal inconversível, que propulsionaria os gastos do governo (D3) acima do crescimento do PIB, justamente para sustentar a sobrevivência da economia bi-setorial novecentista, composta de D1 + D2, incapaz de se auto-sustentar.
Crônica insuficiência
Desde então, o bisetorialismo não apenas inexiste em essência, mas apenas na aparência, como igualmente deixou de ser suficiente para reproduzir o capital na escala necessária para bancar crescente lucratividade.
É moral ou imoral, positivo ou negativo, os gastos do governo crescerem abaixo ou acima do PIB, algo que deixa os analistas da grande mídia dotados de convicções absolutas sobre seus equivocados pontos de vista, visto do ângulo do desenvolvimento do próprio capitalismo?
Os saudosos da economia de mercado criaram ideologia que contamina a capacidade de despertar o espírito crítico analítico. Predomina a mecanização pensante, como se o mundo funcionasse como o relógio de Descartes.
O buraco é mais em baixo. Não é com explicação econômica, mas com explicação política, que é possível entender o processo. O governo, ao incrementar seus gastos acima do crescimento do PIB, combate a histórica e crônica insuficiência relativa de consumo que acompanha o capitalismo desde os seus primórdios, como destaca Marx.
Leitura de Malthus
Se não fizer isso, o socialismo – ou algo equivalente, em novas versões históricas – naturalmente ressuscita. Entraria em colapso a capacidade de manobra dos que determinam o ritmo dos acontecimentos no campo econômico e político. Emergiriam novas e irresistíveis forças sociais, que forçariam, incontrolavelmente, reformas políticas e econômicas radicais.
Merece, por isso, profunda reflexão a declaração do presidente Lula ao Globo de que não vê outra alternativa senão aumentar os gastos do governo em proporção maior que o crescimento do PIB.
Na prática, tais gastos, em meio à sobrevalorização cambial, têm garantido no país inflação relativamente sob controle. Se predominasse a lógica midiática da pregação favorável à contenção dos gastos governamentais em nome de princípios neoliberais, o excedente interno, sem poder realizar-se plenamente, nas exportações, não estaria sendo consumido internamente, graças, justamente, ao aumento da demanda estatal, que avança mais que o crescimento do PIB.
Repetiria o engavetamento que o capitalismo entrou no tempo de Getúlio. Lula teria que queimar mercadorias não consumidas internamente por falta de renda, dando subsídios aos capitalistas, caso não tivesse, antes, colocado poder de compra nas mãos dos miseráveis por intermédio do programa Bolsa Família.
Estaria o PIB crescendo mais que os gastos do governo se os gastos do governo estivessem crescendo menos que o avanço do PIB?
Uma boa leitura de Malthus faria muito bem aos editorialistas da grande mídia, para entender por que, sob o capitalismo, depois do padrão-ouro os gastos governamentais sempre crescem acima do crescimento do PIB, para dar curso ao próprio capitalismo.
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Jornalista, Brasília, DF