‘Quando eu uso uma palavra, ela significa exatamente o que eu quis que ela significasse, nada mais, nada menos.’ (Lewis Carroll, em Alice no país das maravilhas).
Imagine se cada um utilizasse, no cotidiano, palavras conhecidas mas com significados próprios. Como seria possível manter um diálogo, discutir as ações dos políticos, os acontecimentos diários, as próprias relações humanas, ou simplesmente comprar um pãozinho na padaria da esquina? Há uma vertente da lingüística que afirma que o importante na comunicação não é a exatidão, mas a capacidade de compreensão do ouvinte. Se o ouvinte entendeu a mensagem, não importa que palavras o interlocutor utilizou. A intenção, aqui, não é discutir se esta ou aquela vertente da lingüística é mais adequada ou correta, mas insistir na questão de que a divulgação científica requer responsabilidade e informação correta.
As notícias científicas veiculadas pela mídia, tanto impressa quanto em hipertexto, freqüentemente apresentam problemas de imprecisão, em especial nos termos utilizados, o que já foi abordado como uma ‘licença científica’ (ver, neste Observatório, ‘Da analogia imperfeita às distorções‘). Um caso extremamente recorrente e que desejamos discutir no presente texto é o da utilização do termo ‘código genético’. Um rápido levantamento das notícias veiculadas em websites de grandes jornais do país, como a Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, entre outros, demonstrou que, em absolutamente todos os casos em que o termo ‘código genético’ foi utilizado, seu emprego foi incorreto. Embora em menor grau, até revistas especializadas como a Scientific American Brasil já tiveram seu momento de licença científica em relação ao código genético.
A língua da hereditariedade
Antes de discutir os empregos adotados pelos jornalistas para o termo ‘código genético’, vamos relembrar de onde ele surgiu e seu verdadeiro significado. O início do século 20 foi marcado, dentro da área da biologia, pela elucidação dos mecanismos de herança das características e pelo papel do DNA (ácido desoxirribonucléico) no processo. Em meados da década de 1950, mais precisamente em 1953, Watson e Crick desvendaram a estrutura do DNA (sobre os ombros de gigantes, que descobriram outras informações pertinentes) e seu mecanismo de replicação, ou seja, como uma molécula de DNA serve de molde para a construção de outra molécula de DNA. A partir daí, soubemos que o DNA é composto por unidades repetidas de moléculas menores, os nucleotídeos, e que estes podem ser de quatro tipos – adenina, timina, citosina e guanina, representados pelas letras A, T, C e G, respectivamente.
Detalhes maiores sobre a estrutura do DNA são irrelevantes, no momento. Uma analogia freqüentemente utilizada por autores de divulgação científica, como Richard Dawkins, é a de que o genoma humano, por exemplo, seria formado por uma biblioteca composta por 23 volumes (cromossomos). Cada volume tem diversas páginas com palavras escritas pela disposição seqüencial de letras (nucleotídeos).
Semelhantemente ao DNA, as proteínas são formadas por unidades menores, os aminoácidos, que são unidos uns aos outros de forma linear (mais uma vez, detalhes são irrelevantes). Isso significa que a informação hereditária (DNA) contida em cada volume está escrita em uma língua, enquanto as características (proteínas) estão escritas em outra língua, ou seja, a informação está codificada. A dificuldade da empreitada de se decifrar a codificação utilizada pelos organismos vivos era a de que a língua da hereditariedade era composta por seqüências de quatro letras (nucleotídeos), enquanto a língua das características era formada por 20 letras (aminoácidos). Tornou-se necessário, então, desvendar qual seria o dicionário que traduz a informação de uma língua para outra, ou seja, qual seria o código da hereditariedade, ou código genético.
Uma nova seqüência
O astrônomo Gamow, com importante contribuição na teoria do Big Bang, foi um dos primeiros a dedicar-se à empreitada de desvendar o código genético. A conclusão relatada posteriormente é a de que cada grupo de três nucleotídeos (denominado um códon) no DNA significa um aminoácido na proteína. Por exemplo, o códon ATG significa o aminoácido metionina. O que é mais importante nesta descoberta (sem entrar em detalhes) é que este código é o mesmo para a imensa maioria dos organismos vivos, de modo que o código genético é considerado universal. Ou seja, o mesmo dicionário traduz a informação que está nas plantas, nos animais, nas bactérias. O código genético é uma das mais fortes evidências de ancestralidade comum entre todos os organismos vivos.
Assim, quando lemos nos jornais, revistas e websites que um grupo de pesquisadores desvendou o código genético de determinado organismo vivo, o que se espera é que eles tenham descoberto um novo dicionário, não um novo livro. No entanto, o que vemos na leitura da íntegra da notícia ou do artigo originário publicado pelos pesquisadores, na imensa maioria destas notícias, é que a pesquisa, na verdade, trata do seqüenciamento do genoma, o que nada mais é que a descoberta da seqüência dos nucleotídeos do DNA do organismo, ou seja, a leitura de outro livro. Os cientistas decifraram as palavras do livro, e não um novo dicionário. O caso mais recente foi o do fungo da caspa. O que foi descoberto é qual a seqüência de nucleotídeos do DNA do fungo, e não de que forma o fungo traduz a informação de seu DNA em proteína; afinal, isso já está devidamente conhecido.
Para ilustrar este erro comum, voltemos ao códon exemplificado anteriormente. ATG significa o aminoácido metionina. Um novo código seria a descoberta de um organismo onde a seqüência ATG signifique o aminoácido leucina, por exemplo. Isto é um novo código.
Morse e a mensagem
Para se observar a imensa quantidade de notícias com uso incorreto do termo, seria de se esperar que fosse um termo muito restrito e difícil de ser encontrado. Mas não é. Qualquer livro de Genética ou Biologia Molecular traz a explicação sobre o código genético nos capítulos que tratam da síntese das proteínas. O processo é chamado, não por acaso, de ‘tradução’. E também não é um termo novo, mas com pelo menos 50 anos de uso. Por que então a insistência na inexatidão?
Poderia se pensar que, como acontece com outros termos que foram incorporados pelos cientistas após uma ampla utilização pela população, os jornalistas estivessem apenas utilizando-se da terminologia já existente e aplicando-a às novidades publicadas pelos cientistas. Então precisamos recorrer aos dicionários e verificar o significado de código. De acordo com o dicionário eletrônico Michaelis, código é ‘um sistema lingüístico, pelo qual se transcreve ou traduz uma mensagem’. O dicionário não informa que cada nova mensagem é um novo código, mas que código é um sistema pelo qual uma mensagem é traduzida. Podemos ilustrar.
Imagine uma situação de guerra. A inteligência de um determinado país intercepta uma seqüência de bips curtos e longos. Percebe-se logo que não se trata de bips aleatórios, mas de uma mensagem codificada. Por sorte, a inteligência reconhece que o código utilizado pelos inimigos é o código Morse. Assim, é possível traduzir a mensagem codificada para a língua do inimigo e, com um intérprete, traduzi-la para a língua nativa. A mensagem poderia dizer a que horas, por exemplo, haverá um ataque. Algumas horas depois, a inteligência recebe outra seqüência de bips. É outra mensagem codificada em código Morse. Será que nesta situação o jornal publicaria que a inteligência decifrou um novo código Morse vindo do inimigo? Ou a manchete diria que a inteligência decifrou uma nova mensagem vinda do inimigo?
Divulgação de qualidade
Pois bem. Cada seqüência de nucleotídeos do DNA de uma espécie é uma nova mensagem a ser decifrada, não um novo código. O código genético é universal, ou seja, é o mesmo para quase todas as espécies. Sendo assim, é adequado escrever que ‘as vítimas do acidente da TAM serão identificadas pelo código genético’, como está escrito em uma notícia da época do acidente, em julho deste ano?
Nunca é demais repetir: a divulgação científica requer responsabilidade. É ela quem fornece ao público o embasamento que será utilizado em momentos de decisões importantes, como discussões sobre o aborto, organismos geneticamente modificados, uso de células-tronco, clonagem etc. São de responsabilidade do editor da área não somente os artigos escritos por seus jornalistas, mas também os traduzidos a partir de notícias do exterior, pois tais erros não são exclusividade de brasileiros.
É claro que não se pode esperar que um jornalista tenha conhecimento absoluto de todas as áreas científicas. Uma das soluções para minimizar tais erros é que os cientistas tenham um engajamento maior na divulgação científica de qualidade; outra opção seria a utilização mais acentuada de consultores especializados por parte da grande mídia. De qualquer forma, devemos continuar lutando por uma divulgação científica de qualidade, que forneça informações coerentes e corretas à população.
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Pela ordem, biólogo, doutor em Genética e Evolução, professor da Universidade Federal de Viçosa; e bióloga, mestre em Genética e Evolução, doutoranda em Genética pela Universidade de São Paulo