Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A TV que mata e aleija por dinheiro



‘`É sangue mesmo, não é mertiolate´/ E todos querem ver/ E comentar a novidade./ `É tão emocionante um acidente de verdade´/ Estão todos satisfeitos/ Com o sucesso do desastre:/ `Vai passar na televisão…/ Vai passar na televisão´’


Este trecho de Metrópole, de Renato Russo, sintetiza a relação entre o micro e o macromórbido. A curiosidade dos transeuntes ganharia a curiosidade da massa, quando tudo se transportasse pela tela da televisão.


Apesar da mitificação nos discursos dos políticos, dos poetas, de ideólogos e de certos idealistas, o povo nada mais é do que um monte de indivíduos. O povo não é sagrado. O povo não é mais sábio. A voz do povo não é a voz de Deus. O povo é só um agregado de pessoas que vivem em sociedade.


Os indivíduos têm as suas limitações naturais e as suas esquisitices. O passageiro que vislumbra, excitado, todas aquelas coisas feias que entrevê da janela do seu carro, intimamente (ainda que negue) satisfeito diante dos efeitos de um desastre de automóvel, é, como componente de uma série atávica, o cidadão romano que se deleita com os ossos quebrados, com o sangue jorrado das entranhas dos gladiadores e dos condenados que ‘se apresentam’ no Coliseu.


Barbárie ancestral


Tenho um grande amigo que adora lutas de boxe. Meu amigo é sofisticado e instruído. Porém, o seu gene não nega: cultiva entre os glóbulos a barbárie dos seus ancestrais. No caso, caucasianos, mas isso não importa: a tara pela violência persiste, democraticamente, em todos os continentes.


Desconfio desses apaixonados pelas lutas de boxe. Chamam-nas de ‘arte’, entre um e outro baforar de cachimbo e aquele seleto prazer que só os queixos dilacerados são capazes de lhes inspirar. Meu amigo é um bárbaro refinado. Não o condene. Procure entendê-lo.


Na Espanha, há touradas. Torço sempre pelos touros. Mas isso também não importa.


Na Espanha, há televisão. Lá como cá, um meio que, ressalvados os seus acertos, presta-se a saciar-nos os instintos primevos.


Outro dia, na península, um desses programas similares ao da Márcia Goldschmidt, intitulado O Diário de Patrícia, do canal Antena 3, ‘tentou reconciliar’ um casal. O espanhol Ricardo e a russa Svetlana estavam separados havia mais de um mês. Na TV, Svetlana recusou a proposta de casamento do ex-namorado, que denunciara por maus-tratos. Dias depois, o enjeitado, que também é açougueiro, foi acusado de ter-lhe desferido uma facada no pescoço, como o teria feito em uma ‘plaza de toros’. Svetlana morreu. Consta que, ao aceitar participar do programa, não soubesse com quem realmente teria de conversar, sob o testemunho do mundo. Ricardo estava proibido pela Justiça de se aproximar de Svetlana a uma distância inferior a 500 metros. A emissora poderá ser responsabilizada, caso tenha usado de artifícios para atrair a entrevistada, sem lhe ter dado ciência do encontro.


No Brasil, temos um programa que serpenteia ao mesmo nível desse tipo de ‘atração’. Assim se apresenta o Superpop de Luciana Gimenez no site da Rede TV!: ‘Surpreendente, dinâmico e com muito alto-astral, é um programa que agrada toda sua família’.


Ponho-me a imaginar o sorriso enlevado do pai, da mãe e da filha, diante das imagens de um suposto marido que teria entrado em um motel com um colega da academia de ginástica. O tal marido e a esposa, no estúdio, discutindo a relação, até o momento-chave do flagrante da traição com outro homem.


Muito interessante, também, a exploração, ad nauseam, de casos de artistas que teriam saído com travestis, até o desfecho da suposta agressão.


É mesmo de levantar o astral de toda a família. Do vovô ao Rex.


Vulgaridade no ar


Não pense que se queira apregoar o veto a essa ou aquela pauta. Não se deve alimentar tabus. No entanto, é mais do que claro que programas como Márcia, Superpop e O Diário de Patrícia escolhem temas e situações que, calculadamente, descambam para a vulgaridade e para a exploração do grotesco.


O povo gosta, a audiência aumenta. Recorro a uma nova síntese, de um outro roqueiro genial: ‘Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro, transformam um país inteiro num puteiro, pois assim se ganha mais dinheiro…’


Nada disso é novidade. Mas na Espanha a morte de Svetlana tem levado, enfim, a um debate sobre como refrear os abusos televisivos. O editorial da versão online do diário El País sobre esse e outros desvios, ‘Televisão de alto risco‘, é contundente:




‘Na busca por protagonistas para o espetáculo, sempre haverá como atrair alguém suficientemente vulnerável do ponto de vista emocional, cultural ou social, ou alguém disposto a pagar com o ridículo o preço dos cinco minutos de fama. Os responsáveis pela televisão devem esclarecer, de uma vez por todas, se estão dispostos ou não a empreender a auto-regulamentação. Porque, de outro modo, a sociedade terá que adotar outras medidas para se defender’.


No Brasil, cabeças não faltam para preencher a carapuça gigante. Resta saber se haverá vontade suficiente para cortá-las. Enquanto isso, vão caindo no cesto as das vítimas e as dos inocentes úteis que nasceram para nos divertir, entre um e outro pedaço de pizza.


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Este articulista conseguiu localizar Brasilino Soares Miranda, acusado de ter forjado uma conversa de MSN que acabaria publicada no Diário Oficial do Poder Judiciário de São Paulo (ver ‘Do fórum para o mundo, com e sem apelação). O funcionário disse que, por ora, não vai se manifestar sobre o episódio.


 


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Jornalista