Que coisa emblemática, aquela confusão da terça-feira (20/11) na Televisora Regional de Táchira, em que a deputada venezuelana Íris Varela Rangel agrediu, en vivo y en directo, o apresentador de televisão Gustavo Azócar, dono de um programa de perfil bem popular chamado Café com Azócar. Depois de assistir ao vídeo no YouTube, fiquei pensando se não foi uma grande armação, embora tenha me animado com a possibilidade de a vítima ser um desses escroques que se apossam de microfones e câmeras de televisão para fazer ‘comunicação’ em proveito próprio como se falasse em nome ‘do povo’.
Ao que parece, o motivo teriam sido algumas considerações do apresentador em seu livro Histórias negras de dignitários vermelhos: a comandante Fosforit. Íris Varela é aliada de Hugo Chávez na assembléia e Azócar um dos poucos críticos do dirigente venezuelano na mídia local. Teve gente que viu no episódio uma ‘mensagem subliminar’ para comunicadores e vozes discordantes da política de Chávez. Teorias conspiratórias à parte, não é exatamente improvável que o ‘elemento surpresa’ não tenha sido tão surpresa assim.
Azócar afirma em seu blog que, naquele dia, se deparou com a estréia de um programa oficialista na emissora em que trabalha, transmitido pouco antes do seu horário, ainda às 6h45. A deputada irascível já estava lá, com uma equipe de seis supostos seguranças (dois deles sacaram câmeras digitais para gravar a performance da parlamentar, o que, de fato, dá a impressão de que o show havia sido pelo menos roteirizado).
Linguagem franca
De acordo com informações largamente veiculadas na internet, as denúncias feitas por Azócar em seu livro teriam sido o estopim da briga, especialmente o fato de ele acusar a parlamentar de ser a dona da empresa Menservic SRL, que é beneficiada em contratos que, devido à posição política de sua proprietária, jamais poderia manter com o governo.
Querela venezuelana à parte, não deixaria de ser interessante ver quebrado, da maneira mais espalhafatosa possível, o monopólio do discurso que faz pulular nas emissoras de televisão aberta um certo tipo esquisito de comunicador, mácula da profissão dos jornalistas: o apresentador de programas populares. Gente como Carlos Massa Ratinho, Raimundo Varela, Gerdan e o bem-sucedido neófito José Eduardo Bocão, entre vários outros de perfil semelhante espalhados pelo Brasil afora, especialmente no Nordeste.
Não ignoro a eventual função social desses espaços comunicacionais. Há certas denúncias de discriminação social ou racial, de exploração profissional e de descaso com a coisa pública, que só surtem efeito quando feitas na televisão, com imagens sem cortes e na linguagem franca do povo.
Explorar miséria e ignorância
A contrapartida, entretanto, é pesada: cada um desses programas é conduzido, em geral, tendo como base uma cartilha de valores conservadores, superficiais, preconceituosos por um sujeito sem formação na área (na Bahia, o ‘Bocão’ é uma exceção, o que torna a situação ainda mais vexatória, porque trata-se de jornalista formado). E haja opinião e considerações as mais esdrúxulas sobre assuntos os mais desconexos. E tome tapas e marteladas na mesa, fala grossa, pose de macho vingador. Isso para não falar no mau gosto que é indiscutivelmente uma regra nessas produções.
Além de estimular um senso comum impregnado de banalidade e insuportável tendência a ‘achologias’, esses programas espetacularizam a miséria sugando toda e qualquer dignidade que ainda reste da parcela da sociedade que vive em condições abaixo da linha da pobreza. E tome um fogãozinho aqui, uma cesta básica acolá, enquanto se exploram aberrações as mais diversas, desde pessoas embriagadas ou mutiladas até situações de conflito familiar ou social, sempre sob um lamentável ângulo tipo ‘arrocha horror show’.
Assim como aconteceu no caso da deputada venezuelana, desconsiderados os motivos específicos daquela situação, gostaríamos de ver um dia nossa população deixar de ser massa ignara de espectadores e se revoltar contra essa exploração diária en directo y en vivo na hora do almoço – quem sabe, jogando, se tiver à mão, tomates e ovos podres naqueles que vivem de explorar sua miséria e ignorância. Imagino a equipe chegando na área e sendo surpreendida pela revolta popular. Ia ser show de bola e com certeza bombar no YouTube. Fica a sugestão.
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Excerto da nota ‘Jornalista baiano quer processar apresentador da Record/BA por achincalhe’, de Cristiane Prizibisczki, da Redação Portal IMPRENSA (íntegra aqui).
(…) No dia seguinte à publicação do artigo, o quadro ‘A praça é do povo’ do programa Balanço Geral [da TV Itapoan, afiliada da Rede Record na Bahia] divulgou imagens em que uma personagem chamada ‘Sandra Lobo Mau’ aparece. Durante o quadro, Varela, do estúdio, diz: ‘Esta é a Sandra Lobo Mau. Ela, uma vez por mês, escreve em um jornal importante da cidade. Ela fala mal de mim, fala mal do Ratinho, fala mal do Bocão…Você sabe o que ela escreveu? Mandou o povo jogar ovo podre na gente…Como é que um jornal `bota´ um negócio desse para escrever? Ela detesta o povo, não gosta que a gente mostre o povo…’ [veja o vídeo aqui].
De acordo com Sandro Lobo, a referência a seu nome e sua profissão é explícita. ‘As pessoas que me conhecem sabe que ele [Varela] está se referindo a mim. Isso pode causar danos para minha carreira, para minha imagem’, disse, em entrevista ao Portal IMPRENSA.
O editor afirmou que irá processar Varela por danos morais. Ele também disse pretender que a notícia seja conhecida nacionalmente, para que se crie um debate sobre a qualidade dos programas na TV. ‘Estou até feliz que esse artigo tenha gerado isso, para criar uma discussão sobre a qualidade dos programas. Acho perigoso que esses comunicadores tão próximos ao povo façam programas tão demagogos e populistas. É preciso chamar a atenção para a maneira como usam o espaço na televisão’, disse o profissional. (…)
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Jornalista, editor-coordenador de fechamento dos cadernos “Salvador” e “Bahia” do jornal A Tarde, Salvador, BA