Diogo Mainardi, o colunista de maior audiência da revista Veja, é um homem inteligente e escreve muito bem. Mas sofre de um mal literalmente de origem: não teve infância. Por isso, vive a brincar com palavras e idéias. Embaralha umas e outras, como se fossem peças de um puzzle, e depois vai encaixando-as arbitrariamente. Não se preocupa com a afinidade das peças. Pelo contrário: quanto menos se ajustam, melhor. Mainardi quer mesmo é provocar escândalo, perplexidade, indignação, ira. Comportamento padrão de adultos simplesmente provocadores: querem atrair a atenção que lhes faltou na infância, quando, por não serem crianças de verdade, eram uns chatos. Hoje, o colunista tem glamour, derivado de suas impertinências. Mas possui, também, a chatice das pessoas que não tiveram infância.
Diogo Mainardi é autor de um livro mal-sucedido como obra de ficção, mas que explorava uma pista extremamente fértil: a busca do sertão brasileiro, o centro, o umbigo do Brasil. Leituras criativas de relatos de sertanistas, produzidos a partir do século 17, davam encanto a Contra o Brasil, apesar da sua inconsistente armadura de fábula anárquica, de literatura lato senso. Homem urbano por excelência, Diogo Mainardi se despiu de preconceitos (e também de ufanismo de almanaque) na revisita ao tão maltratado hinterland brasileiro. Levando consigo seu leitor, deu-lhe um banho de Brasil, o verdadeiro.
Caminho de volta
Mainardi parece não ter mais as pretensões de literato. A coluna de sucesso em Veja parece satisfazê-lo. Ou, se não o satisfaz intimamente, o exaure. Para ser sempre chocante, agressivo, irônico, iconoclasta, ovelha negra, bête noire, ele precisa de tempo e de energia satânica. Não lhe sobra vitalidade para outra coisa. Muito menos para as letras, que, bem escritas, demandam dedicação integral.
Por isso, em boa medida, Diogo Mainardi está desfazendo (ou ‘desescrevendo’, para usar um roteiro aplicável ao caso, de Lewis Carroll) a pequena – mas valorosa – obra que produziu até anos atrás. Agora é apenas um colunista de revista semanal, um clown, um bobo (não da corte, que rejeita, mas da gente fina, receptiva ao deboche superior). Depois do anarquismo construtivo, do anarquismo coletivo e do anarquismo global, Mainardi nos dá uma variação do tema: o anarquismo bolinha de sabão (mas pode ser também de festim, ou fogo-fátuo).
Numa de suas últimas crônicas, Mainardi retoma, como certeira, expressão que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso cunhou, mas, ao sentir-lhe o peso, negou a autoria: a ‘sertanização’ da política brasileira. Garante o colunista da Abril (o pior dos meses, segundo Elliot) que a sertanização deixou de ser apenas metáfora no governo Lula. Ele tem no sertão sua maior base de apoio. Seguindo a tradição dos últimos governos, aplicou em escala nacional ‘o que a tradição sertaneja produziu de pior: a compra de voto, o empreguismo, a corrupção’.
Profetiza o guru do duplex que os políticos sertanizados ‘não vão parar de roubar’. Por isso, só restaria à opinião pública ‘exigir que eles aprendam a roubar escondido’.
Não há o que contestar nesse diagnóstico. Apenas a lamentar (e, em certa medida, desprezar) a postura de quem, como Mainardi, o formula no litoral, parceiro de uma elite a arranhar as praias brasileiras há cinco séculos, um parasitismo que a crônica quinhentista já registrava. O escritor Mainardi foi mentalmente ao sertão com sua literatura e cobriu-o de luz urbana, supostamente mais brilhante e de tensão mais firme. O colunista Mainardi nem intelectualmente consegue divisar mais o sertão, fascinado que se acha pelo lusco-fusco da cidade beira-mar.
O colunista Diogo Mainardi pode fazer o caminho de volta à Itália. Se sobreviver, sua literatura – injustamente esquecida – agradecerá.
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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA), em cuja edição nº 348 este artigo foi originalmente publicado