Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma relação de superficialidade e incompreensões

O distanciamento entre cidadania e Estado, potencializado pelo perfil autoritário do poder público em momentos decisivos da República, sempre inibiu a reflexão acadêmica sobre a segurança pública no Brasil. A identificação da polícia como aparato meramente repressor, braço do último regime militar (1964-1985), produziu uma espécie de preconceito nos formadores de opinião em relação ao assunto, inibindo a formulação de políticas e dificultando o controle externo sobre as práticas policiais. Só a partir dos anos 90, com a profusão do Terceiro Setor, é que o tema passou a despertar mais atenção da mídia e dos círculos acadêmicos. Um dos grandes desafios da segurança pública no Brasil é reaproximar a polícia do cidadão, especialmente nas comunidades pobres, as mais afetadas pela violência que alterou o perfil das cidades brasileiras.

Este distanciamento prejudica as tentativas de controle social sobre a polícia. Os Conselhos Comunitários de Segurança, criados para que os moradores dos bairros pudessem interferir nas decisões sobre as ações de combate à violência, são uma iniciativa importante criada nos marcos da democracia representativa, mas sofrem de problemas que vão do desinteresse da população ao excessivo controle dos agentes policiais sobre os fóruns de discussão – assim como o aparelhamento da polícia pelos comerciantes, o abuso de poder por parte de alguns representantes e o desinteresse dos jovens, vítimas principais dos crimes mais violentos.

Policial e repórter

A indisposição para tratar a segurança como prioridade no Brasil atinge todas as instâncias de poder. Aproveitando-se da caracterização da violência pela mídia como responsabilidade dos governantes locais, o Executivo e o Legislativo nacionais lavam as mãos, um percentual ínfimo de crimes chega a uma Justiça historicamente lenta e o Ministério Público age timidamente como fiscal das forças policiais. As instâncias de controle interno, como as corregedorias, ainda são desacreditadas pelo alto grau de influência política em suas ações.

Alterar o perfil das políticas de segurança no Brasil, fortalecendo seus instrumentos de formulação e controle, requer uma mudança cultural nos diversos níveis da representação social. É preciso criar regras transparentes para coleta e divulgação dos dados sobre violência e elevar o status do tema na academia, na mídia e nas instâncias de representação política. A redução dos prazos de tramitação dos processos disciplinares nas instituições policiais poderia contribuir para a redução da impunidade, o grande combustível do crime. O compromisso maior dos gestores públicos com a continuidade dos projetos de segurança também seria um reforço considerável no combate à criminalidade, assim como mais investimentos em estudos sobre a enorme complexidade assumida pela expansão da violência na sociedade brasileira.

A trajetória dos grandes jornais brasileiros é recheada de exemplos pitorescos de promiscuidade entre delegacias e redações. É comum, nas histórias destes veículos até os anos 60, a figura do profissional com dupla jornada, trabalhando como policial e repórter. Essa dubiedade pode contribuir para o entendimento da vocação do jornalismo brasileiro para uma cobertura pontual e pouco contextualizada da violência e da criminalidade. Outro fator determinante na compreensão desta tendência é, mais uma vez, o grau de afastamento e desconfiança nas relações entre a intelligentsia e o aparato policial no Brasil após o golpe militar de 1964, que naturalmente repercutiu na mídia de forma especial.

Tratamento de espetáculo

A indisposição dos intelectuais com os quartéis e delegacias – assim como os efeitos da censura sobre as notícias que denunciavam as falências das políticas públicas e as fragilidades dos gestores do período autoritário – atrofiou a reflexão sobre diversos temas de interesse público, especialmente o da segurança pública. A questão só começou a voltar às páginas nobres dos grandes jornais com a redemocratização e as eleições diretas para governador, em 1982. Esse retorno, entretanto, ocorreu em um quadro de excessiva politização, atingindo um teor explosivo no Rio de Janeiro devido ao confronto entre o governador Leonel Brizola, político nacionalista de esquerda, e as Organizações Globo, o grupo mais forte da mídia brasileira. Considerar este episódio nos parece fundamental para compreender o desequilíbrio persistente no noticiário da violência.

A pesquisa ‘Mídia e violência – Como os jornais retratam a violência e a segurança pública no Brasil’, realizada pelo Centro de Estudos da Segurança e Cidadania (Cesec), da Universidade Candido Mendes, mede este fenômeno em números. Os pesquisadores analisaram 2.514 textos de nove jornais das três maiores capitais da Região Sudeste – São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte – publicados entre maio e setembro de 2004. Concluíram que a metade do espaço (48,2%) destinado à cobertura da violência nos nove jornais enfocava eventos ocorridos no Rio de Janeiro, ficando a outra metade para fatos ocorridos nos demais 26 estados do país.

O tratamento da criminalidade carioca como espetáculo compromete a reflexão nacional sobre um problema que não está localizado em um ponto geográfico, mas afeta todas as cidades. A regionalização do tema produz ainda uma acomodação política, isentando a esfera federal da tarefa de buscar respostas para questões que os estados, isolados, não têm condições de enfrentar. É o caso da precariedade do sistema penitenciário, que assume proporções explosivas em São Paulo e só ganha a atenção da imprensa em situações de crise, como fugas ou rebeliões com mortes. É também o caso do tráfico de drogas e contrabando de armas na fronteira, a ponta inicial do processo que deságua na tirania e no estado permanente de guerra instalados pelos traficantes nas favelas cariocas.

Politização excessiva

A tendência de regionalização da cobertura se verifica no exíguo espaço destinado ao tema nas seções nobres dos jornais, como as editorias de Política e Economia. A reflexão sobre a política nacional de segurança raramente chega às colunas de opinião e aos editorais, como demonstra a pesquisa já citada. O trabalho do Cesec revelou que a maioria dos textos analisados teve como foco central as forças de segurança (40,5%), o ato violento (21%) e o desdobramento do ato violento (16,2%). Ou seja, muitos fatos individualizados e poucas peças de reflexão, fruto da indisposição da mídia em encarar a segurança pública como prioridade, apesar dos números alarmantes de vítimas.

Em junho de 2002 a imprensa estreou uma nova – e negativa – fase na cobertura da violência urbana. Naquele mês, o jornalista Tim Lopes, da TV Globo, foi morto por traficantes numa favela do Rio, na qual entrara disfarçado para uma reportagem sobre a circulação de drogas e os abusos sexuais em um baile funk. Identificado pelos bandidos, foi torturado e assassinado. Seu corpo foi dilacerado e queimado. A tragédia marcou o fim de uma cultura de livre circulação dos jornalistas pelas áreas geográficas dominadas pelas quadrilhas. Foi o fim do prazo de validade de um ilusório ‘passe livre’ da imprensa e gerou insegurança nas redações, que passaram a discutir a conveniência de ir ou não à favela ouvir as versões sobre os acontecimentos noticiados, especialmente em relação à atuação da polícia. Os repórteres ficaram ainda mais dependentes das fontes policiais, o que dificulta a fiscalização que o jornalismo naturalmente exerce sobre o aparato policial.

A falta de cobrança da sociedade e a indiferença da academia não estimulam a construção de sistemas confiáveis de dados sobre os atos violentos. A tipificação e a contagem dos crimes ficam a cargo dos governos locais com suas polícias e freqüentemente são objetos de denúncia de manipulação. Contribui para este fenômeno a excessiva politização da segurança pública na mídia, que muitas vezes explora o tema com o flagrante propósito de enfraquecer ou enaltecer os governos regionais, entrando no círculo vicioso de superficialidade e incompreensões.

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Presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro e integrante do Cesec.