Em seu livro A Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant afirma duas categorias: o ser e o dever ser. Pressupõe-se que o pensador da gnosiologia – gnosiologia vem do grego gnósio = conhecimento + logia = logos, lógica, análise, razão –, como um admirador da razão e do conhecimento, estivesse enveredando por duas questões: o fato, o que é, e a ética, o dever ser, e, em cada um destes campos, deveriam haver pessoas responsáveis.
É bom frisar que Kant foi um ‘apaixonado’ pela revolução racionalista e que, em momento algum, prescindiu da razão para que o homem encontrasse a paz universal. Mas há um provérbio muito usual, ainda nos dias de hoje, significando o não-acesso do homem aos meios eficazes para resolver os seus problemas: ‘Quem não tem cachorro caça com o gato.’ Se não temos pessoas aptas a instaurar um debate ético-ideológico, a mídia, que deveria se resguardar a falar dos fatos, a fazer a cobertura dos acontecimentos, quiçá a fazer uma critica responsável, acaba por tentar fazer, de uma forma atabalhoada, uma interlocução ideológica.
A questão que devemos levantar é a seguinte: a quem compete fazer uma análise ideológica dos fatos? Ou seja, a quem compete fazer uma axiologia – à imprensa, ou as instituições políticas? Recorramos aqui, a mais uma etimologia grega. Axion = valor + logia = lógica, razão, analise. A quem compete fazer um juízo de valor das coisas?
A revolução francesa foi uma das experiências pioneiras na consecução da laicização do Estado e, como tal, implantar o modelo republicano-liberal-racional – em oposição à lei divina. Com isso, a propulsão do surgimento de instituições políticas moldadas pela ciência política e as convenções sociais.
Animal metafísico
Antes, o que vigorava era a lei divino-natural que, mesmo após o surgimento do racionalismo, em alguns países – como a Alemanha, por exemplo – ainda mantinha uma velha forma de se fazer política. Lá, devido a uma fragilidade das instituições políticas, em pleno o século 19 a imprensa acabava por usurpar o papel que, num Estado onde as instituições políticas estivessem minimamente consolidadas, caberia a elas fazer este papel.
Na Alemanha daquela época, séculos 18 e 19, os jornais e revistas faziam o papel de articuladores político-ideológico, pois não havia organizações políticas fortes. Com as instituições políticas frágeis, cabia à imprensa fazer o papel de articuladora política. Estariam alguns veículos de comunicação sul-americanos, sobretudo brasileiros – ou, para delimitar ainda mais o tema, a revista Veja – vivendo ainda com uma mentalidade da Prússia daquele período, ou seja, usurpando o papel que seria, se fortes, eminentemente das instituições políticas? Penso que a nossa mídia não está nos vendo como cidadãos auto-nomos – auto= eu mesmo + nomos = normas-leis-diretrizes-convensao. E, também, não está acreditando no nosso esclarecimento.
Podemos, kantianamente falando, definir o esclarecimento como a saída do homem da sua menoridade, no sentido de uma ética individual e coletiva. Um Estado, enquanto resultado de um pacto social coletivo, deve ter maturidade para ser o articulador, com inteligência, das suas problemáticas políticas e ideológicas. A menoridade é a inabilidade de usar seu próprio entendimento sem guia. Esta menoridade é auto-imposta, se assenta, sobretudo, na falta de coragem de usar do seu próprio entendimento.
Kant afirmava: Sapere aude (ouse conhecer). Segundo o filósofo, aí estaria a chave para que uma natureza racional existisse em seu fim, ou seja, em seu telos – objetivo. Para tal, seria necessária a autonomia de um Estado, a boa vontade política. Assim, o homem, enquanto animal metafísico, para além do físico e do capital, representaria necessariamente sua própria existência.
Universo espiritual da polis
Somos homo-volens – homens livres – como afirmou J. P. Sartre: ‘Sou condenado a ser livre.’ O homem é um ser dinâmico e responsável por uma ética. Estaríamos nós ainda demonstrando fragilidades, a ponto de não assumirmos o nosso papel na trama histórica?
Quando o homem, seja ele indivíduo, ou enquanto um conjunto convencional, se mostra frágil, ele vira presa fácil de outrem. Quando as nossas instituições racionais se mostram capengas, elas se tornam presas fáceis de oportunistas. Nossa história recente mostrou isto. A nossa sociedade, devido à fragilidade das nossas instituições políticas, caiu nas garras de uma ditadura sanguinolenta e de um capitalismo selvagem. Nós, brasileiros, enquanto agentes políticos, precisamos, com a fragmentação burguesa, de aprofundar as nossas discussões sobre a prática humana.
À imprensa, cabe, com toda a liberdade, cobrir os fatos, dizer aquilo que é; à sociedade, no campo da inteligência, cabe falar e discutir o que deve ser. Como afirmavam Platão e Aristóteles, a agregação da cidade enquanto um universo espiritual da polis, só ocorrerá se cada um cumprir a sua função.
Lição aprendida?
Podemos ainda levantar algumas conjecturas, que seriam objetos para um outro artigo, mas que podemos ventilar aqui: em 2006, alguns setores da mídia, sobretudo a revista Veja e a rede Globo, atacaram de forma virulenta, o presidente Lula e o seu partido. O presidente continuou governando normalmente e as instituições políticas do país continuaram a funcionar – com suas fragilidades, é claro. Mas o que se viu foi que os vírus lançados contra o presidente não tiveram eficácia. O presidente se reelegeu, não teve uma vitória esmagadora no Congresso nem nos estados, mas, no fechar das contas, saiu-se relativamente vitorioso.
Ficam algumas indagações: terá a mídia aprendido a lição? Estaríamos nós com as nossas instituições políticas mais solidificadas? O nosso Pacto Federativo estaria mais consolidado? Ao contrário da Alemanha do século 19, com os seus 38 ducados e principados, o Brasil estaria mais propenso a uma aglutinação enquanto Estado nacional?
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Pós-graduado em Filosofia Política pela Universidade Católica de Goiás, professor substituto na Universidade Federal de Goiás, campus Jataí