Escrevo a propósito de dois comentários feitos em duas diferentes postagens no blog da revista Pobres & Nojentas – um referente a Che Guevara e outro ao resultado do referendo na Venezuela. Nos dois comentários, espantei-me com o tom virulento das palavras, escritas em maiúsculas, como se quisessem ser transmitidas aos berros. Cheias de um certo ódio, mas não o ‘majestoso, santo, puro e benfazejo’ ódio do poeta Cruz e Sousa. Só ódio.
Cita o anônimo, num dos comentários, um certo ‘modelo de democracia respeitada no mundo inteiro’ referindo-se à democracia brasileira, que estaria ‘sempre se ajustando com o passar do tempo’. Bem, o que me interessa no comentário é essa idéia de democracia, porque me espanta o ódio provocado, em certos grupos sociais e em certos espíritos, por figuras como Guevara e Hugo Chávez.
Num outro comentário, mais um anônimo faz algumas afirmações sobre Guevara, cuja biografia conheço porque sobre ele li – não a feita pela revista Veja – que também revelam esse ódio sem adjetivos.
Não há letras maiúsculas
Em ambos, parece estar colocada essa idéia de que ‘os outros fazem o que eu sou incapaz de fazer’ ou ‘os outros não fazem o que sou capaz de fazer’. E, tanto num quanto noutro comentário, ressoa também uma análise social que vê na ausência de guerra a ausência de conflito. No comentário sobre a Venezuela, a idéia de democracia é reduzida a uma suposta liberdade de poder falar e pensar. Falar e pensar a partir de quê? Da revista Veja?
Fala o autor do ‘respeito às diferenças’ na democracia brasileira. Sim, existem, mas a partir de um determinado patamar social, bem estreito. Dele para baixo, de tal respeito não há nem sombra. Desse patamar para baixo, onde os degraus são largos e onde está a maioria, mulheres ficam presas com homens, pessoas morrem em filas de hospital, crianças são largadas no lixo. Gente – no dizer de Nietzsche – fatigada até para morrer. Fatos que rendem – alguns – notícias durante uma semana, até que, mantidos os fatos, sejam substituídos os nomes. Democracia da desgraça. Respeito às diferenças, sim, porque, diferentemente do pobre, o nome do rico não freqüenta essas seções dos noticiários. E, sim, isso se ajusta com o passar do tempo no Brasil, porque, cada vez mais, a sociedade em geral se interessa cada vez menos em ‘falar e pensar’ sobre a distância que separa esses dois patamares.
Há mil maneiras de matar, o fuzil de Guevara foi uma delas. As outras 999 são o cotidiano na maior parte das cidades brasileiras, latinas, do mundo, onde vive a parcela para a qual essa ‘liberdade de poder falar e pensar’ não se manifesta. Pela qual poucas bocas gritam. Pela qual não há letras maiúsculas a berrar a injustiça.
Ver e compreender o mundo
Não fosse assim, eu não leria nas páginas da grande mídia nesta semana coisas como ‘Imprensa mundial estampa derrota de Hugo Chávez’. Refestelam-se na derrota.
Penso nisso a propósito do livro Fábrica de mentiras, do jornalista alemão Günter Wallraff, que revela o processo de fabricação de notícias do jornal Bild. Wallraff cita trechos em que a empresa proprietária do Bild analisa o papel social do veículo:
‘O Bild é também um remédio contra o tédio e ajuda a pessoa, segundo sua própria capacidade, a lidar com o mundo que a cerca de uma maneira sensata.’
E mais adiante:
‘A necessidade dos leitores do Bild de um mundo ordenado, um mundo que pode ser visto e compreendido – um mundo que ele procura e encontra no Bild –, inclui também a angústia diante deste mundo impossível de se compreender sem ajuda. Essa angústia do leitor é captada pelo Bild de muitas maneiras… Graças à autoridade do jornal, o leitor livra-se de ter que procurar, por conta própria, ordenar, tornar visível e julgar o que acontece no mundo a seu redor. Como o jornal Bild fornece a seus leitores uma visão ordenada e comentada do que ocorre no mundo – de maneira curta, concisa e decisiva –, eles têm plena certeza de que, apesar de tudo, vêem e compreendem este mundo.’
Suposta vida democrática
Sem desejar entrar aqui em análises mais minuciosas, de viés mais político, penso que, em certos discursos individuais como os comentários citados – mas amostras de um certo coletivo –, o gesto de agarrar-se à idéia de democracia sem perceber a realidade em volta tem muito de medo. Esse medo imemorial que ronda a nossa alma, medo da perda, medo de saber que nunca se está tão alto que não se possa cair, e que nunca se está tão baixo que não se possa levantar.
Ninguém – desde que esteja com o espírito apaziguado – deseja cair. E poucos lá no alto se permitem a idéia de que os caídos desejem se levantar, da forma que for, seja ela socialmente aceita ou não. Em nossa sociedade, a idéia de ‘subir’, ‘ascender’, é diariamente acalentada na mídia, mas não pode ser um movimento coletivo. É sempre individual, para recompensar alguém por sua ‘capacidade’, seu ‘empreendedorismo’, um currículo feito de forma correta, uma certa ‘qualificação’. A TV e os jornais estão cheios de notícias desse tipo, fáceis de compreender. Não há que se pensar em ascensões coletivas porque essas necessariamente exigem chacoalhões na sociedade, na forma de pensar, de agir, na política, enfim. Na tal democracia.
E assim o máximo a que muitos se permitem na suposta vida democrática é essa difusa ‘liberdade de poder falar e pensar’. Sim, para eles Veja é indispensável.
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Jornalista, Florianópolis, SC