Se existe um fator positivo da globalização para a camada média de leitores, ouvintes e espectadores de notícias, este é definitivamente a explosão de informação advinda especialmente com a internet, e que acaba produzindo gente mais crítica, menos crente em tudo o que lê, ouve ou vê. Assim, velhas raposas felpudas das redações e que ainda sobrevivem aos novos tempos têm cada vez mais dificuldade de comprovar em textos teses arquitetadas em reunião de pauta. Da mesma forma, um número cada vez maior de leitores toma conhecimento de como se ‘produzem aspas’ para colocar na boca de fulano ou, simplesmente, repórteres bem-intencionados e que acreditam em suas próprias teorias acabam sendo desmentidos não por cartas dos leitores, mas por seus próprios tropeços na apuração das informações.
A matéria ‘Sem hospícios morrem mais doentes mentais’, de Soraya Aggege, publicada na edição de domingo (9/12) de O Globo, parece padecer de um ou mais dos males assinalados acima. Numa análise atrapalhada dos números, a repórter evoca o que seria um furo jornalístico para concluir que o fechamento dos manicômios no Brasil teria provocado a morte de 41% a mais de pacientes nos últimos cinco anos.
A experiência bem-sucedida dos CAPS (Centros de Atendimento Psicossocial) – um caso raro no Brasil de política iniciada num governo anterior e aprofundada na administração atual, que atende a mais de 300 mil pessoas pelo país afora – é apenas tangenciada. O tom maior da pauta parece vir orquestrado a partir dos acordes da Associação Brasileira de Psiquiatria.
Indústria da internação
É importante notar, porém, que existem divergências. Para Luís Fernando Tófoli, professor adjunto de Psiquiatria da Universidade Federal do Ceará, o contundente furo de reportagem não passa de ‘fanfarrice epidemiológica’. Ele explica que o raciocínio desenvolvido na matéria não resiste a uma singela análise comparativa de dados do Sistema de Informações Sobre Mortalidade (SIM), que estão disponíveis para qualquer pessoa no site do Datasus. O SIM é o sistema que reúne todas as declarações de óbito no país.
Tófoli considera absurdas a premissa e a conclusão da matéria. Para saber se estão morrendo mais doentes mentais seria necessário uma pesquisa específica, o que não existe. O dado objetivo de que houve uma melhoria no registro de mortes no Brasil provavelmente faz toda a diferença. Essa melhoria, segundo o professor, é explicável pelo aprimoramento na captação dos dados sobre mortalidade no Brasil desde 1999. Em números absolutos, entre 2001 e 2005 há uma redução de 30 mil mortes nos registros que antes eram classificados como mortes mal definidas. Quando os registros de morte melhoram, causas que eram antes pouco declaradas pelos médicos, como as diretamente decorrentes de transtornos mentais, naturalmente aumentam.
A tabela abaixo que foi compilada com dados disponíveis na internet, de onde foi sacado o número de 6.655 mortes em 2001 que consta da matéria. É intrigante que a repórter, ao analisar suas fontes, não tenha se dado conta de que indicadores de outras causas também cresceram em grandes proporções (em azul), como os de doenças do sistema nervoso (item VI) ou do aparelho geniturinário (item XIV). Nesses casos não há qualquer evidência de grande redução de leitos. Haveria também uma campanha para matar esses brasileiros?
Óbitos por causa segundo a Classificação Internacional de Doenças, | ||||
Capítulo CID-10 | 2001 | 2005 | Diferença 2001-2005 | |
absoluta | percentual | |||
I. Algumas doenças infecciosas e parasitárias | 45.032 | 46.628 | 1.596 | 3,54% |
II. Neoplasias (tumores) | 125.348 | 147.418 | 22.070 | 17,61% |
III. Doenças do sangue | 5.240 | 4.999 | -241 | -4,60% |
IV. Doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas | 47.800 | 53.983 | 6.183 | 12,94% |
V. Transtornos mentais e comportamentais | 6.655 | 8.931 | 2.276 | 34,20% |
VI. Doenças do sistema nervoso | 12.296 | 16.384 | 4.088 | 33,25% |
VII. Doenças do olho e anexos | 12 | 13 | 1 | 8,33% |
VIII. Doenças do ouvido e anexos | 129 | 112 | -17 | -13,18% |
IX. Doenças do aparelho circulatório | 263.417 | 283.927 | 20.510 | 7,79% |
X. Doenças do aparelho respiratório | 90.288 | 97.397 | 7.109 | 7,87% |
XI. Doenças do aparelho digestivo | 44.393 | 50.097 | 5.704 | 12,85% |
XII. Doenças da pele e subcutâneo | 1.825 | 2.014 | 189 | 10,36% |
XIII. Doenças do sistema osteomuscular | 2.606 | 3.084 | 478 | 18,34% |
XIV. Doenças do aparelho geniturinário | 14.350 | 18.365 | 4.015 | 27,98% |
XV. Gravidez, parto e puerpério | 1.587 | 1.661 | 74 | 4,66% |
XVI. Afecções no período perinatal | 34.274 | 29.799 | -4.475 | -13,06% |
XVII. Malformações congênitas | 9.520 | 9.927 | 407 | 4,28% |
XVIII. Causas Mal-definidas | 135.766 | 104.455 | -31.311 | -23,06% |
XX. Causas externas (violência, acidentes, suicídio) | 120.954 | 12.7633 | 6.679 | 5,52% |
Total | 961.492 | 1.006.827 | 45.335 | 4,72% |
Fonte: Datasus, 2007 (www.datasus.gov.br)
Outro dado intrigante que pode ser encontrado no Ministério da Saúde – e que ajudaria o leitor a entender melhor o contexto – é que a fatia do orçamento da saúde que ia para a indústria da internação hospitalar nos manicômios – de quase 90% – caiu para pouco mais de 50% nos últimos anos. Efetivamente, muita gente deve estar descontente com a desinternação.
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Respectivamente, jornalista; mestre em Psicologia e psicóloga do Instituto de Psiquiatria da UFRJ