O Observatório da Imprensa na TV de terça-feira (11/12) exibiu a segunda parte da série de três programas sobre os impactos da vinda da família Real para o Brasil, ocorrida em 1808. O foco do debate foi a conjuntura que levou o país a um atraso de mais de três séculos em relação ao início da impressão industrial de textos, datado de 1456, quando Johann Gutenberg confeccionou a Bíblia de Mogúncia. Outras colônias na América, como México e Peru fundaram suas primeiras tipografias séculos antes do Brasil, que só decretou a implantação da Impressão Régia em 13 de maio de 1808. Participaram do programa Isabel Lustosa, historiadora da Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, e o jornalista e escritor Laurentino Gomes, em São Paulo (veja o perfil dos participantes ao final do texto).
O editorial de Alberto Dines foi gravado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, onde está a maior parte do acervo da Biblioteca Real, que pertencia a Portugal. ‘A imprensa no Brasil começou com a chegada da Corte. Começou muito tarde. E por que começou? Porque a Corte precisava se comunicar com o povo. Então, foi um ato, de certa forma, arbitrário, de cima pra baixo’, disse.
Inquisição dificultou implantação da tipografia
O jornalista comentou ainda o papel da inquisição neste atraso. Naquela época, explicou Dines, era preciso um licenciamento. O controle era exercido no início do processo pelo Santo Ofício da Igreja Católica. O órgão da igreja operava aqui através de comissários que davam informações à Coroa portuguesa e obedeciam às ordens de Lisboa. Já a coroa espanhola criou no Novo Mundo vários tribunais, descentralizando a fiscalização. A medida tornou possível execuções de condenados, mas contribuiu para que suas colônias pudessem fundar tipografias muito antes do Brasil (as primeiras impressões na América seguiram a seguinte ordem: Cidade do México, 1535; Lima, 1583; EUA, 1640; Bogotá, 1739; Santiago, 1748; Quito, 1760; Nova Orleans (Espanha), 1764; Buenos Aires, 1766; e Montevidéu, 1807).
Dines comentou que um estudo pouco conhecido aponta que a implantação da tipografia poderia ter sido antecipada em mais de 60 anos. Em 1749, Antônio Isidoro da Fonseca – que foi um dos doze tipógrafos mais importantes de Lisboa, tendo publicado a Biblioteca Lusitana, o primeiro compêndio das obras escritas em Portugal – tentou estabelecer uma tipografia no Rio de Janeiro. Após publicar alguns folhetos, foi surpreendido com uma intimação que o obrigou a fechar a gráfica porque contrariava às ordens de Lisboa.
Como a Coroa portuguesa precisava comunicar-se com os súditos, ao tomar conhecimento que nos porões da nau Medusa, havia uma prensa vinda da Inglaterra e ainda não montada em Lisboa, trazida pelo futuro Conde da Barca, instalou a Impressão Régia no Rio de Janeiro. O decreto foi publicado em 13 de maio de 1808. A primeira tipografia, que também imprimiu despachos e livros, publicou o primeiro jornal feito no Brasil, a Gazeta do Rio de Janeiro.
Aventura da Corte no Brasil e Hipólito José da Costa
No início do debate ao vivo, Dines mostrou uma miniatura da prensa de madeira inventada por Gutenberg em 1456 e explicou que apesar de o engenho ter possibilitado uma das mais extraordinárias revoluções da humanidade, ele é secundário. ‘O verdadeiro ovo de Colombo eram os tipos móveis, que podiam ser usados muitas vezes e tornaram possível imprimir um numero ilimitado de folhas com um número limitado de tipos’.
Em seguida, Laurentino Gomes disse que o surgimento da imprensa foi ‘parte da aventura da vinda da Corte para o Brasil’ e comentou que três meses antes da instalação da Impressão Régia, Hipólito da Costa fundou o Correio Braziliense em Londres. Isabel Lustosa explicou o envolvimento de Hipólito com a maçonaria, que determinou a sua prisão. Para ela, por meio da biografia do primeiro jornalista brasileiro é possível conhecer a situação peculiar do Brasil de 1808. Nascido na Cisplatina, Hipólito passou a adolescência no Rio Grande do Sul e concluiu os estudos em Lisboa. Aos 24 anos, foi indicado para uma missão nos Estados Unidos com a incumbência de trazer sementes para tentar implantar na colônia, uma prática comum dos países europeus na época.
Lustosa classifica esta viagem como marco na trajetória de Hipólito. O brasileiro teria tido contato, pela primeira vez, com instituições democráticas da sociedade americana. ‘Foi surpreendente para ele os ataque e contra-ataques entre jornais, as eleições livres e uma série de outros elementos. O contato foi marcante e iluminou seu destino. A partir daí se filia à maçonaria, que era uma forma de subversão do absolutismo’. Era uma saída para trocar idéias em um mundo controlado. Como Portugal ainda estava sob o domínio da inquisição, ele foi preso.
Dines perguntou a Laurentino Gomes como a corte formou sua cultura se a impressão não era permitida no Brasil e, em Portugal, ainda era controlada. O autor de 1808 disse que a antiga metrópole era um dos países mais atrasados da Europa. O espírito aventureiro e de conquistas que havia marcado a época das navegações e das grandes descobertas havia desaparecido com o início do reinado de D. Maria I, extremamente ligada à Igreja Católica. Portugal foi o último país a abolir a inquisição, havia um controle absoluto das idéias.
O Brasil visto de fora
A historiadora afirmou que viajantes como Hipólito da Costa e José Bonifácio, que passou 10 anos transitando pela Europa, levavam idéias novas para Portugal. A contribuição desses relatos teria sido importantíssima, na visão de Lustosa: ‘Era um olhar sobre o Brasil que a distância possibilitou. Eram pessoas que viam o Brasil como uma unidade’. De longe, teriam visto o que Brasil representava para Portugal.
Um telespectador perguntou a Laurentino Gomes por que a Inglaterra não tinha tomado posse do Brasil em 1808. O jornalista explicou que a aliança entre os dois países era antiga e que não havia interesse em ‘passar a rasteira em Portugal e tomar as colônias’. Laurentino esclareceu que o acordo feito entre os países em troca da escolta até o Brasil foi extremamente vantajoso para a Inglaterra, resultando na abertura dos portos e em outros privilégios.
Aversão à imprensa
Outra questão levantada no programa foi a seguinte contradição: como um reino que se orgulhava tanto de sua biblioteca era tão fechado em relação à imprensa? Para Laurentino, era uma excentricidade, uma ‘tentativa de mostrar uma corte mais ilustrada do que de fato era’. O jornalista contou que relatos da época apontam a Corte portuguesa como fúnebre, carola e depressiva. Não ofereciam festas, encontravam-se apenas em cerimônias religiosas.
Os reis tinham o hábito de colecionar livros e documentos antigos. Na pressa da viagem para o Brasil, os caixotes com os livros foram esquecidos no cais de Lisboa, enlameado após uma chuva. As obras vieram para o Brasil posteriormente, em três remessas, até 1811. Na negociação para Portugal reconhecer a independência do Brasil, a Biblioteca Real foi comprada por cerca de 850 mil libras esterlinas. ‘Uma boa compra, valeu a pena’, disse Laurentino.
A resposta do povo brasileiro à implementação das tipografias foi analisada por Isabel Lustosa. Para a historiadora da Casa de Rui Barbosa, mesmo com uma tiragem limitada, entre 250 e 500 exemplares vendidos principalmente por assinaturas, os primeiros jornais do Brasil foram ‘fundamentais para a difusão das idéias’. O reino tinha um grande número de analfabetos, mas os periódicos muitas vezes eram lidos em tabernas para as classes menos ilustradas.
Os prejuízos causados pela inquisição no Brasil, para Alberto Dines, não podem ser medidos, são incalculáveis. Entre 1536, quando foi instalada na metrópole, até 1821, quando foi abolida pela Constituição de Portugal, esteve presente no Brasil através do controle de livros. As obras que vinham de Lisboa eram examinadas no cais. ‘Tudo isso tinha um ônus tremendo, as idéias não podiam circular’, avaliou. Os contrabandos e relatos de estrangeiros eram as alternativas encontradas pelos brasileiros para ter acesso à cultura e à informação livre.
No encerramento do debate, Laurentino Gomes disse que o Brasil pode comemorar o aniversário em 1808, apesar de ter sido descoberto em 1500. Para ele, nenhum outro período na história do Brasil passou por transformações tão profundas. Deixou de ser uma sociedade atrasada, ignorante e proibida. Isabel Lustosa reafirmou que o cerceamento à informação foi extremamente prejudicial, mas que quando a impressão foi liberada foi fundamental para a formação de uma classe política. Alberto Dines leu um comentário de Hipólito da Costa publicado no Correio Braziliense quando soube que o Brasil teria sua primeira tipografia que criticava a demora da entrada do Brasil na era Gutenberg:
‘Saiba pois o mundo e a posteridade que no ano de 1808 da era cristã, mandou o governo português no Brasil buscar a Inglaterra uma impressão com seus apendículos necessários… Tarde, desgraçadamente tarde. Mas, enfim, aparecem os tipos no Brasil.‘
Perfil dos participantes:
Laurentino Gomes é jornalista e escritor. Trabalhou em O Estado de S. Paulo e Veja. Dirige uma unidade da Editora Abril responsável pela publicação de 23 títulos. É autor de 1808 – como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil.
Isabel Lustosa é doutora em Ciência Política pelo IUPERJ. É pesquisadora da Casa de Rui Barbosa especialista em história da imprensa brasileira e sátira política. Escreveu D. Pedro I – Um herói sem nenhum caráter.
***
200 anos da chegada da família real (2)
Alberto Dines # editorial do programa Observatório da Imprensa na TV nº 465, no ar em 11/12/2007
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
Estamos na segunda etapa acompanhando a viagem da Corte Lisboeta aqui no Brasil. Estamos nesse momento aqui na Biblioteca Nacional, que é uma parte da bagagem que a Corte devia trazer de Lisboa, mas esqueceram no cais do porto. Os livros não chegaram em 1808. Chegaram em 1810. Hoje e no próximo programa nós vamos nos deter naquilo que interessa a este Observatório que é a imprensa.
A imprensa no Brasil começou com a chegada da Corte. Começou muito tarde. E por que começou? Porque a Corte precisava se comunicar com o povo. Então, foi um ato, de certa forma, arbitrário de cima pra baixo. Nos outros países, a imprensa começa do meio para cima ou se espalha pelos lados porque era uma necessidade popular de saber das coisas, de se comunicar. Aqui, não. O poder central precisava se comunicar. Então, ele cria uma imprensa capaz de multiplicar as informações a respeito de seus atos. E por que demorou tanto? Se nós considerarmos que Gutenberg – as datas são mais ou menos imprecisas – tenha preparado a Bíblia de Mainz ou de Mogúncia, considerado o primeiro livro impresso, em 1456, por que só em 1808 temos o Brasil entrando na era Gutenberg? Esta é uma pergunta chave. Embora a Corte tenha trazido um grande avanço, nós temos que parar para nos perguntar por que este avanço demorou tanto.
******
Jornalista