A entrevista do presidente Luiz Inácio Lula da Silva exibida pelo Fantástico, da Rede Globo, na noite de domingo (17/7), chamou a atenção dos observadores pela notável coerência de argumentos havida entre esta e outras duas, veiculadas no Jornal Nacional na sexta-feira e no sábado, com o publicitário Marcos Valério Fernandes e o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares. Pode ter sido mera coincidência, como sustentou Delúbio, ao ser indagado pelo repórter Antonio Carlos Ferreira sobre a convergência de seus raciocínios com os expressos por Valério no dia anterior. E bota coincidência nisso.
Para o telespectador que acompanha o jornalismo global, a matéria do Fantástico com o presidente da República veio coroar a fieira de manifestações que, aos juízos mais apressados, poderia soar com uma armação marqueteira para ajudar a desviar o foco das responsabilidades pelos escândalos que assolam o país, o governo e o PT: em vez dos crimes de corrupção, concussão, malversação e tráfico de influência, tudo se resumiria a um crime eleitoral. Dos males o menor, diriam os cínicos. Mas essas conclusões só serão conhecidas ao final das investigações ora levadas a cabo pelo Congresso e, na seqüência, pela Justiça.
De todo modo, o que ficou da entrevista presidencial foi um gostinho de ‘quero mais’ [veja a transcrição abaixo]. Ou, do ponto de vista jornalístico, um travo de desilusão quanto à condução da matéria. Sobretudo porque, ao responder a uma pergunta sobre o envolvimento de seu partido com as denúncias de corrupção, o presidente confessava um crime eleitoral – ‘O que o PT fez do ponto de vista eleitoral é o que é feito no Brasil sistematicamente’ – e ficou tudo por isso mesmo. Não houve repergunta. E os repórteres com alguma quilometragem sabem que a entrevista jornalística não foi feita para levantar bola para ninguém. Quanto mais se conseguir que o entrevistado diga o que não queria dizer, melhor para o público – neste caso, para o interesse público.
‘Trabalho sozinha’
Este Observatório procurou a jornalista Melissa Monteiro, que conduziu a entrevista exibida por longos 11m55 pelo Fantástico e repercutida, na segunda-feira (18/7), pelo Jornal Nacional. Ela falou por telefone, de Paris, onde vive e trabalha para a produtora independente MTP. Embora o presidente Lula não tenha falado formalmente a jornalistas brasileiros durante os dias em que esteve na França, concedeu a Melissa o privilégio de 25 minutos exclusivos numa manhã luminosa nos jardins da Residence Marigny, palacete onde se hospedam os convidados oficiais do governo francês.
‘Não foi privilégio’, rebate Melissa. ‘Eu não trabalhei cinco semanas para conseguir isso, trabalhei cinco semanas para conseguir uma coisa que não consegui.’ Explica-se: o objetivo original da repórter era produzir um documentário sobre o presidente, que depois seria oferecido às emissoras clientes de sua produtora. ‘Minha produtora tinha o intuito de fazer um documentário sobre o Lula. Durante cinco semanas eu me bati para fazer esse documentário em Brasília e não consegui. E acabei ficando com a entrevista’.
– E o presidente sabia desse seu empenho de cinco semanas na tentativa de entrevistá-lo?
– Sabia. Era uma matéria que eu queria ter feito com ele, e ele infelizmente não teve agenda para isso porque caiu num momento errado. Eu cheguei lá [a Brasília] e no dia seguinte a crise estourou.
– E, sabendo disso, aceitou receber você?
– Exatamente. Diga simplesmente isso, e não é nada complicado. Ele aceitou receber não uma [jornalista] brasileira, ele aceitou receber uma jornalista que trabalha para a mídia francesa. Eu trabalho sozinha, com uma câmera do meu lado que eu mesma dirijo.
‘Isso não interessa’
A jornalista repele qualquer ligação de sua matéria com as entrevistas de Valério e Delúbio, exibidas pela Globo nos dois dias anteriores. ‘Ela [a entrevista com Lula] foi feita às 10h45, no horário de Paris, na sexta-feira. Ou seja, às 5h45, horário de Brasília’, diz. ‘A entrevista original é de 25 minutos. Ela não trata só desses assuntos [veiculados na matéria exibida pelo Fantástico]. Ela não tinha, em algum momento objetivo, de tratar exclusivamente de assuntos brasileiros porque foi feita para uma mídia francesa. Ou seja, todos os minutos que você não vê tratam de política exterior, tratam da viagem dele [Lula] à França.’
– Quem autorizou a entrevista?
– Não existe isso. Não existe uma pessoa que autoriza. Você tenta, vai tentando… A resposta está aí: eu comecei a tentar a fazer essa matéria em Brasília, e ela fracassou. E a entrevista que o presidente me concedeu foi uma conseqüência de uma matéria mais longa, que fracassou.
– Em Marigny foi ele quem chamou você?
– Acho que isso é um detalhe bobo, quem chamou, quem não chamou. Eu tive a entrevista e ponto. Eu sou jornalista. Ninguém me chamou. Eu pedi para estar ali e fui aceita.
[Na matéria ‘Segundo Singer, crise não estava prevista em pauta’, a Folha de S.Paulo (terça-feira, 19/7) afirma que o secretário de Imprensa e Divulgação da Presidência da República, André Singer, informou que ‘a entrevista havia sido solicitada pela rede de TV France 2 em maio’, segundo o jornal ‘por meio de carta assinada pelo redator de serviço estrangeiro do canal’. Continua a matéria da Folha: ‘Ainda de acordo com o secretário, a jornalista foi escolhida pela importância da France 2 na TV francesa. Singer diz ter conseguido incluir a entrevista na agenda de Lula no final da visita oficial à França, na última sexta’.]
A repórter prefere não revelar o making of de sua matéria: ‘Isso não interessa. Interessa que eu consegui [a entrevista]. Eu já estava havia cinco semanas em contato com eles, e na hora em que eu estava aqui [em Paris] eles acabaram me dando, isso é tudo’.
– Eles quem?
– Quem quer que seja. O que conta é que o Lula aceitou responder às minhas perguntas. A última palavra numa coisa dessas é do Lula.
A matéria do Fantástico
Matéria exibida pelo Fantástico, da Rede Globo, em 17/7/2005; texto disponível no site do programa
Numa entrevista concedida a uma jornalista brasileira que trabalha para a televisão francesa, o presidente Lula falou sobre a crise política que o Brasil atravessa. Disse que os escândalos de corrupção serão apurados até o fim. A entrevista à repórter Melissa Monteiro foi em Paris, sexta-feira passada, dia 15 de julho.
Em relação ao PT, Lula disse que o partido errou ao fazer, do ponto de vista eleitoral, o que, segundo ele, se faz sistematicamente no Brasil. O Fantástico não teve interferência na escolha das perguntas, mas comprou os direitos de exibição da entrevista.
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Infelizmente o Brasil atravessa uma nova crise política, nós já atravessamos outras crises no passado, ligadas a corrupção. Quando é que o Brasil vai se livrar definitivamente dessa doença, qual é a cura definitiva?
Lula – De um lado você tem uma série de denúncias, naquilo que diz respeito a possibilidade de investigação de um governo, nós estamos fazendo mais do que já foi feito em qualquer outro momento da história do Brasil. E tem um problema grave, porque toda vez que você combate a corrupção, ela aparece mais na imprensa e passa para a sociedade que tem mais corrupção exatamente porque você está combatendo. Nesses 29 meses de governo mais de mil pessoas foram presas no Brasil, ou seja, presas de verdade, por sonegação, por prática de corrupção. E nós vamos continuar utilizando todo o potencial que o estado tem para fazer o que precisa ser feito no Brasil.
Meus adversários devem ter ficado um pouco indignados porque todas essas denúncias de corrupção, não chegaram ao governo. Pelo contrário, as últimas pesquisas mostraram que o governo teve um crescimento na opinião pública. Isso significa que o povo brasileiro está sabendo distinguir bem o que é denúncia verdadeira, o que o governo está apurando e o que é peça de discurso de pessoas que querem fazer discurso. Ou seja, toda vez que alguém faz ilações sobre corrupção e não dá o nome concreto, fica difícil de apurar.
O Congresso Nacional tem uma CPI que vai funcionar até outubro. Portanto até lá nós vamos ter ainda muita gente sendo ouvida, muita denúncia. Algumas serão verdadeiras porque terão nomes e aí você terá como investigar. Outras serão ilações que você, muitas vezes, não tem como investigar. Depois que a CPI terminar o trabalho dela, ela vai ter que mandar isso para o Ministério Público e aí ele vai então decidir o que fazer com o resultado.
É importante lembrar que também não é a primeira vez que o Brasil tem uma CPI. Nós gostamos muito de CPI e elas são feitas sistematicamente e eu acho que isso faz parte do jogo democrático. O que é importante para mim é que eu gostaria que não acontecesse isso. Eu acho que o Brasil não merece isso porque ele está vivendo um bom momento na sua economia, o Brasil está vivendo um bom momento na geração de empregos e eu gostaria que tudo fosse diferente. Mas não é. Faz parte da política, nós temos que encarar isso com a tranqüilidade que um dirigente tem que ter e vamos ver se os nomes aparecem e se as provas aparecem para que as pessoas possam ser punidas.
O senhor acredita que há males que vêm para o bem?
Lula – A minha tese é que nós precisamos aproveitar esse momento que está acontecendo no Brasil para sermos mais duros, criarmos mais mecanismos de proteção do estado brasileiro e vamos fazer. Goste quem gostar, doa a quem doer, nós vamos continuar sendo implacáveis na apuração da corrupção e quem tiver que ficar bravo com o governo, que fique. Mas se tiver, nós vamos apurar. Esse é o papel da Polícia Federal, do Ministério Público, esse é o papel do governo. Mas o que nós precisamos é trabalhar com fatos verdadeiros para que possamos mostrar o resultado concreto das investigações para a sociedade.
Vossa Excelência sente um peso muito maior hoje do que quando foi eleito Presidente da República?
Lula – Não, hoje eu tenho muito mais consciência do que é administrar um país como o Brasil. Na verdade, quando eu tomei posse tinha uma preocupação muito forte com a questão da política econômica, e isso foi resolvido por que tivemos paciência, não tomamos nenhuma atitude populista, porque soubemos esperar o tempo certo de fazer as coisas. E, agora, deveria ser o momento em que a gente estaria colhendo aquilo que plantamos em 2003 e 2004. Não estava previsto acontecer era nenhum erro político, nenhuma crise mais forte, mas aconteceu. E nós esperamos que, se cada instituição cumprir o seu papel, resolveremos isso. O Brasil não pode. De forma nenhuma, jogar fora uma oportunidade extraordinária como essa.
O Brasil é mais respeitado no mundo. Tem mais força nos organismos multilaterais, tanto na ONU, quanto na OMC, e nós precisamos fazer deste respeito que conquistamos uma conquista de benefícios para o povo brasileiro, seja no comércio, seja na política.
Sente saudades em que era sindicalista ou oposição?
Lula – Saudade não, até por que passei a vida inteira para chegar onde cheguei. Na verdade quando você é oposição tem mais facilidades, não tem a responsabilidade de fazer, só de cobrar. Eu sempre tento fazer analogia com coisas simples que as pessoas possam entender. Muitas vezes, dentro de casa, um filho ao pedir dinheiro para o pai, e que o pai nega, ele (o pai) pode estar sendo o mais verdadeiro dos seres humanos. Mas o filho acha que o pai estava negando uma coisa que ele poderia fazer. Na política é a mesma coisa. Se você quiser ser sério, só poderá fazer aquilo que é possível fazer. Não pode inventar, gastar o que não tem, fazer populismo, prometendo coisas que você não vai conseguir fazer. Trabalhar com a verdade é muito fazer. A desgraça da mentira é que, ao você contar a primeira, passa a vida inteira contando mentiras para justificar a primeira. E a verdade não. Ela você disse ela hoje, daqui há cem anos vai dizer outra vez. Então, eu prefiro ser verdadeiro.
O senhor foi criador do PT. É impossível não associar a sua imagem à imagem do partido. Hoje ele comemora 25 anos e, infelizmente, está envolvido em todas essas denúncias de corrupção. Onde foi que o pai, Lula, errou?
Lula – Olha, eu tenho o PT como filho, por que eu ajudei, sou um dos fundadores do PT. Acho que o PT está sendo vítima do seu crescimento, ou seja, em 20 anos chegamos à presidência do Brasil, coisas que, em outras partes do mundo, muitos partidos demoraram 100 anos para chegar. A minha tese é de que o PT tem explicar para sociedade brasileira que erros cometeu. Na medida em que o partido trocou a direção e está fazendo uma auditoria interna, o Tarso Genro tem o compromisso de explicar para a sociedade onde e por que o PT errou, e o que vai fazer para consertar este erro.
O que o PT fez do ponto de vista eleitoral é o que é feito no Brasil sistematicamente. Eu acho que as pessoas não pensaram direito no que estavam fazendo. O PT tem na ética uma de suas marcas mais extraordinárias. E não é por causa do erro de um dirigente ou de outro que você pode dizer que o PT está envolvido em corrupção. Eu acho que a nova direção do partido saberá explicar para a sociedade o que aconteceu com o PT e o que vai acontecer daqui para a frente.
Mas o senhor estima que alguma culpa nesta crise do PT e do país?
Lula – Não. Já faz tempo que deixei de ser presidente do PT. Fui presidente por três anos. Depois da presidência da República, não pude mais participar das direções do partido, das reuniões dos diretórios. O PT tem muita autonomia com relação ao governo. E o governo tem mais autonomia ainda em relação ao PT. Eu acho que o partido teve um problema que é a questão da direção. Houve um tempo em que os melhores quadros da política de esquerda no Brasil eram dirigentes do PT e depois que nós ganhamos prefeituras, governos estaduais, elegemos muitos deputados e eu ganheir a presidência, grande partes desses quadros vieram para o governo e a direção ficou muito fragilizada, enfraquecida, possivelmente por isso cometemos erros que outrora não cometeríamos.
Como o senhor vê o Lula, daqui a um ano e meio, em 2006, após as eleições presidenciais?
Lula – Eu não estou pensando ainda em 2006. Tenho ainda um ano e meio de mandato a cumprir e isso vai exigir de nós uma capacidade de trabalho muito grande. Nós temos muitas coisas acontecendo no Brasil e precisamos cumprir com o nosso primeiro mandato.
Não discuti ainda a questão da reeleição. Não tenho pressa de discutir. Eu tenho que cumprir um programa de governo que eu prometi ao povo brasileiro em 2002. Depois vamos pensar em 2006.
A perspectiva que tenho é que o ano de 2006 será muito melhor para o Brasil do que foi 2005, 2004, 2003. E acho que 2007 será melhor que 2006, que 2008 será melhor que 2007. Eu acredito no Brasil, num ciclo de crescimento sustentável duradouro, que possa durar 10, 15 ou 20 anos. Por isso eu acho que o Brasil está no caminho certo e não temos por que mudar de rota.