Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Indefinição legal na terra de ninguém

A (segunda) longa sessão de julgamento de Renan Calheiros no plenário do Senado Federal (terça, 4/12) teve um desfecho esclarecedor para aqueles que se interessam pela regulação das comunicações no país. Refutando a acusação de quebra de decoro por compra irregular de emissoras de rádio em Alagoas – a questão-chave que havia sido convenientemente ignorada por quase todos os oradores –, o já ex-presidente do Senado perguntou dirigindo-se candidamente aos seus pares:

‘Por que eu haveria de usar `laranjas´ ou ser sócio oculto [por meio de um contrato de gaveta] se a compra direta de uma emissora de rádio seria perfeitamente legal?’.

A resposta oculta à pergunta do senador Renan está implícita nos 48 votos contrários à sua cassação dados por um plenário repleto onde quase um terço dos senhores senadores são – eles próprios ou seus familiares – concessionários de emissoras de rádio e/ou televisão.

Além disso, no dia seguinte, revela-se que na declaração de bens à Justiça Eleitoral feita em 2006, um dos postulantes à vaga de presidente do Senado, o senador Garibaldi Filho (PMDB-RN), aparece como proprietário de 190 mil cotas da Rádio Cabugi do Seridó (RN). Um dia depois, o Ministério das Comunicações exclui o nome e o CPF do senador Garibaldi do cadastro da Anatel alegando, como sempre faz, desatualização (ver aqui, para assinantes).

Entendimento histórico

A legalidade de um parlamentar ser, direta ou indiretamente, o controlador de uma concessão de rádio ou televisão, no exercício do mandato, parece, no mínimo, questionável.

O Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT, Lei nº. 4117/62) determina que quem esteja em gozo de imunidade parlamentar não pode exercer a função de diretor ou gerente de empresa concessionária de rádio ou televisão (parágrafo único do artigo 38). Esta norma foi confirmada pelo Regulamento dos Serviços de Radiodifusão que exige, como um dos documentos necessários para habilitação ao procedimento licitatório, declaração de que os dirigentes da entidade ‘não estão no exercício de mandato eletivo’ [nº 2, alínea d), § 5º do artigo 15 do Decreto 52.795/63].

Ademais, a Constituição de 1988 também proíbe que deputados e senadores mantenham contrato ou exerçam cargos, função ou emprego remunerado em empresas concessionárias de serviço público (alíneas a. e b. do inciso I do Artigo 54). Apesar disso, como na pergunta do senador Renan, o entendimento histórico tem sido que parlamentares podem sim ser concessionários.

Quatro ações

Uma representação inédita do Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor – entidade mantenedora deste Observatório) junto à Procuradoria Geral da República, protocolada em outubro de 2005, deu origem, em julho de 2007, a ações civis públicas propostas pelo Ministério Público Federal (MPF), postulando a nulidade de renovações de concessões de rádio e televisão aprovadas na Câmara dos Deputados entre 2003 e 2005.

A pesquisa na qual se baseou a representação revela que, além de existirem pelo menos 51 deputados, no exercício do mandato, que continuavam concessionários de emissoras de RTV, alguns deles eram membros da Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) e haviam participado e votado na reunião em que foi aprovada a renovação de sua própria concessão. Isto equivale a dizer que deputados foram, ao mesmo tempo, poder concedente e concessionário de um serviço público – a radiodifusão.

Das seis ações iniciais sobrevivem apenas quatro. Duas foram extintas por questões técnicas. As que sobrevivem tratam das renovações das seguintes concessões:

1. Emissoras Reunidas Ltda. (OM), Alegrete, RS, de propriedade do deputado Nelson Proença (PPS-RS);

2. Rádio Renascença Ltda. (OM), Ribeirão Preto, SP, de propriedade do deputado Corauci Sobrinho (PFL-SP);

3. Alagoas Rádio e Televisão Ltda. (FM), Maceió, AL, de propriedade do deputado João Mendes (s/partido); e

4. Sociedade Rádio Atalaia de Londrina Ltda. (OM), Londrina, PR, de propriedade do deputado João Batista (PFL-SP).

Fora de julgamento

Apesar das quatro ações ainda estarem em andamento, as perspectivas de que o MPF consiga a nulidade das concessões é remota. Até aqui os juízes têm indeferido os pedidos de liminar para suspender os efeitos das concessões, sob dois argumentos principais: (a) de que os parlamentares teriam simplesmente violado dispositivos do Regimento Interno da Câmara, sujeitando-se exclusivamente a processos por quebra de decoro parlamentar; e/ou (b) alegando que, representando o parlamentar interessado apenas um voto e tendo sido as renovações das concessões aprovadas por unanimidade, de qualquer forma o resultado das votações na CCTCI seria o mesmo.

Na verdade, as próprias ações propostas pelo MPF partem da polêmica interpretação de que a Constituição de 1988 ‘coíbe apenas a participação dos parlamentares na gestão das empresas concessionárias do serviço (de radiodifusão)’, e permite, inclusive, ‘a celebração de contratos com o ente público, desde que obedeçam a cláusulas uniformes’.

Dessa forma, a justificativa para as ações de nulidade das renovações das concessões funda-se exclusivamente na violação dos princípios constitucionais da impessoalidade, moralidade e legalidade. Vale dizer, ao fato de o deputado ter votado pela aprovação de matéria de seu interesse pessoal privado. Ficam inteiramente fora de julgamento as restrições à outorga de concessões do serviço público de radiodifusão aplicáveis àqueles no exercício de mandato eletivo, existentes tanto no CBT como na própria Constituição, como mencionado acima.

Assimetria de poder

A questão, no entanto, permanece em aberto. Exatamente para evitar a dubiedade legal, o relatório final da Subcomissão Especial da CCTCI que analisa ‘mudanças nas normas de apreciação dos atos de outorga e renovação de concessão, permissão ou autorização de serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens’, apresentado pela deputada Maria do Carmo Lara (PT-MG), na terça-feira (4/12) – coincidentemente, o mesmo dia do segundo julgamento do senador Renan – sugere a apresentação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nos seguintes termos:

‘Acrescente-se o § 6º ao art. 222 da Constituição Federal, com a seguinte redação.

`Art. 222…………………………………………………………………….

§ 6º Não poderá ser proprietário, controlador, gerente ou diretor de empresa de radiodifusão sonora e de sons e imagens quem esteja investido em cargo público ou no gozo de imunidade parlamentar ou de foro especial´.’

Existe, portanto, a possibilidade – remota, é verdade – de que, por iniciativa do próprio Congresso Nacional, o assunto seja definitivamente esclarecido e resolvido.

Se a lei permitir que os detentores de mandatos eletivos continuem a ser concessionários do serviço público de radiodifusão estará se perpetuando uma situação de óbvia assimetria de poder que desqualifica, de forma incontornável, a nossa democracia representativa.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)