O Brasil que vai emergir do mar de lama, como numa metáfora escatológica do Gênesis, não há de ser necessariamente um país mais maduro, mais honesto, ou uma democracia mais bem-estruturada. Seremos apenas uma nação menos inocente, possivelmente mais desconfiada de milagres, santos guerreiros e heróis. Seremos provavelmente um povo menos alegre, como são mais tristes aqueles que têm menos ilusões.
Praticamente todas as nossas instituições, colocadas à prova na nossa história recente, apresentaram um desempenho abaixo de medíocre, para não dizer que foram reprovadas com vexame. Nem mesmo o futebol foi capaz de nos proporcionar um espetáculo completo, culminando com atos de barbárie o que deveria ser a celebração da competição mais importante da temporada. A religião, em sua versão mais tradicional, ficou no caminho, por conta de certa incapacidade para entender a modernidade que dá aos humanos mais arbítrio sobre si mesmos do que desejariam os sacerdotes, e, na versão das seitas liberais, atrapalha-se com malas de dinheiro de origem nebulosa.
O Judiciário já deu sua contribuição ao descrédito geral, na sucessão de Lalaus e Rocha Mattos, em decisões tecnicistas ou contaminadas por uma noção de igualdades diferenciadas segundo o extrato social dos protagonistas. O Congresso Nacional nos brinda agora com esse festival de antropofagismo que apenas oferece, ao cidadão perplexo, razões para desconfiar de que temos enviado a Brasília não o melhor de nossa sociedade, mas os mais espertos. O Executivo, já emporcalhado em outras épocas, ainda precisa provar que não tem autoria direta no escândalo que a cada dia se revela em detalhes mais escabrosos.
Como há 10 anos
A imprensa, essa instituição da qual sempre esperamos a luz da informação e o oxigênio da reflexão, brinda-nos com um registro histórico na dimensão exata de suas premissas, revelando uma visão tacanha das instituições e da sociedade e uma grande vulnerabilidade à manipulação. Imobilizada pela falta de recursos para a investigação independente, fica à mercê da disposição de personagens suspeitos e do interesse político dos protagonistas em revelar ou ocultar aspectos dos fatos que deveriam estar abertos como um leque ao escrutínio da coletividade.
Na seqüência dos episódios que a imprensa nos tem trazido há dois meses, ficamos sabendo que o caixa das campanhas políticas é alimentado basicamente por dinheiro de origem não-revelada, e que o atual presidente da República, como outros que o antecederam, pode ter sido conduzido ao poder à custa de falcatruas. Mas ninguém se habilita a nos informar sobre as responsabilidades do setor financeiro, por onde o dinheiro entra sujo e sai limpo. Nem mesmo nos explicam a coincidência de endereço – a agência do Banco Rural de Brasília citada no escândalo atual é a mesma, e semelhante a prática, onde tinham contas-correntes os fantasmas José Carlos Bonfim, Regina Silva Bonfim e Manuel Dantas Araújo, personagens gerados no esquema de Paulo César Cavalcante Farias.
Passa-se uma década e continua igual o esquema, agora sofisticado por recursos tecnológicos, sem que uma reportagem nos escancare definitivamente quem são os agentes ocultos dessas operações, e que diabo faz o Banco Central que não acaba definitivamente com esse sistema de lavanderias financeiras. Um ou outro abnegado – como o ex-secretário nacional antidrogas Walter Maierovitch – repetem há anos que não há crime organizado ou corrupção sistêmica sem a leniência do sistema financeiro. Mas somos convencidos, de tempos em tempos, de que cada caso é um caso.
Ações combinadas
Também somos informados de que há diferenças entre os sonegadores que servem à classe média empobrecida e aqueles que atendem o topo da pirâmide social. Vai uma grande distância da Estação da Luz à Daslu. O chinês da Luz, da Rua José Paulino e adjacências paulistanas, é jogado algemado no camburão sob aplausos da mídia para a ação policial. A dama da Daslu é detida com direito a telefonemas para pessoas importantes, com tempo para refazer a maquiagem e levada em veículo adequado, e a imprensa vê na ação da polícia apenas exibicionismo ou desejo de desviar a atenção pública do escândalo político.
Do noticiário aos editoriais, passando por articulistas sempre prontos a reiterar com grande senso de oportunidade a opinião dos donos da mídia, somos levados a acreditar que a Polícia Federal é um bando de trapalhões que sai por aí a prender senhoras inocentes só porque elas são ricas. Fica escondido o fato – como irrelevante – de que a ação policial foi precedida por muitos meses de investigações, e que a liberdade dos suspeitos colocava em risco o sucesso do inquérito.
Nenhum repórter foi buscar possíveis ligações com outro fato policial recente, a detenção do notório advogado tributarista Newton Oliveira Neves, de longa data conhecido da Receita Federal, por sua expertise em aliviar empresas e milionários das responsabilidades sociais que eles e a imprensa chamam de ‘custo Brasil’. Diga-se, de passagem, que, na contabilidade do ‘custo Brasil’, nenhum jornalista costuma incluir a sonegação e a corrupção, mas apenas o valor dos direitos trabalhistas.
Aliás, estavam presentes mais de 100 jornalistas, em dezembro de 2002, na conferência sobre jornalismo investigativo realizada na USP, quando o procurador da República Celso Antônio Três e o coordenador-geral de Pesquisa e Investigação da Receita Federal, Deomar Vasconcellos de Moraes, comentaram que os clientes do referido advogado e de outros escritórios eram objeto de constante vigilância por parte das autoridades. Investigava-se a existência de uma indústria de liminares e de atuações combinadas contra o Fisco e a Previdência Social, que poderiam conduzir a polícia a endereços muito chiques. Menos de três anos depois, a imprensa não se lembra de nada. Ou não quer lembrar.
Quebra do lacre
Estamos entrando numa semana decisiva para o esclarecimento do escândalo que envolve diretamente o Partido dos Trabalhadores e seus aliados. Estão em jogo interesses muito complexos. Desde o parlamentar destemperado que quebra os protocolos de educação cívica e chama o presidente da República de idiota – cumprindo seu roteiro de coadjuvante ruidoso – até o ex-ministro todo-poderoso reconduzido ao jogo das sombras nos corredores do Congresso, personagens revelados e ocultos dessa história degradante estarão torcendo e se movimentando para que, no desespero de reduzir sua pena, o despachante Marcos Valério Fernandes de Souza conte apenas parte da história que conhece.
Da imprensa, espera-se que não se satisfaça com o que lhe cai na cabeça. Dependendo de como terminar este capítulo vergonhoso da nossa história, poderemos ainda dizer que o país amadurece com as crises, que aprendemos e crescemos. As forças políticas e econômicas que tradicionalmente fazem uso da corrupção nas licitações fraudulentas, como autores ou receptores de favorecimentos à custa do erário, com certeza querem manter sob controle as informações que agora virão a público.
Esta é uma oportunidade rara para a imprensa quebrar o lacre, que alguns já tentam selar, em torno do sistema que há décadas domina os negócios públicos. É hora de destampar a caixa de Pandora. Como no mito grego, talvez seja necessário conhecer todos os males para nos reencontrarmos com a esperança.
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Jornalista