A rede Globo, símbolo do consumismo e do narcisismo, balançou, contraditoriamente, as bases do individualismo consumista nacional e colocou a poderosa indústria montadora de automóveis na parede, ao longo das reportagens realizadas pelo Jornal Nacional e Bom Dia Brasil. Focalizou, durante cinco dias, semana passada, o caos no trânsito nas grandes cidades brasileiras, provocado, segundo conclusão global, pelo excesso de carros que entopem as ruas.
Na mesma semana em que o presidente Lula colocava todas as suas fichas na indústria, para alavancar a exportação, dando generosos subsídios, prazos mais longos e financiamentos mais altos, especialmente, para as montadoras, configurando a aposta no modelo de desenvolvimento cuja eficácia tornou-se altamente contraditória, a rede Globo revelou a face trágica da qualidade de vida nos grandes centros decorrente dessa opção desenvolvimentista anti-ecológica.
A Globo, que estimula o ultra-consumismo, exacerbando o sonho individual-coletivo nacional de possuir um carro, vendido pelo glamour do artista global mais popular do momento, envolto de um estilo de vida conseqüente ao status global, entrou, com as reportagens colocadas ao ar, em contradição consigo mesma.
Política industrial
Deu nome aos bois, como a causa do caos: o excesso de carros vendidos pelos anúncios publicitários que veicula. Evidenciou o colapso das bases do modelo de desenvolvimento e o fracasso da política de transporte público, cujas empresas, como se sabe, mantêm, nas suas folhas e custos operacionais, representantes político-partidários a seu serviço como forma de recompensa pelos financiamentos de campanha eleitoral.
Foi exposto o prato indigesto, ingerido, compulsoriamente, tanto pelos pobres como pela classe média. Os pobres estão dentro dos ônibus, metrôs e trens apertados, levantando-se às 4,30 para chegar às 9 ou 9,30 ao trabalho, exercitando o estilo sardinha em lata.
A classe média não tem sorte melhor. Usufrui de carros cada vez mais modernos, mas, como os que andam de ônibus, encontra-se no engarrafamento dentro da sua propriedade particular, que, de funcional, tornou-se disfuncional. Prisão de luxo.
O modelo está podre. As reportagens comprovaram. Aposta-se, no entanto – como enfatiza a recentemente lançada política industrial – na dinamização de uma infra-estrutura produtiva e ocupacional apodrecida, que gera impasses que inviabilizam a utilização da própria infra-estrutura.
Processo esquizofrênico
A classe média embarcou, acriticamente, no consumismo. Agora, encontra-se parada nos engarrafamentos dos grandes centros, amaldiçoando o governo. Leva bagaço de laranja da massa das janelas dos ônibus que se encontram em patamar superior, no meio do inferno engarrafado.
Os gastos com os desgastes de partes, peças, componentes, que dependem das montadoras, como elos de cadeia produtiva, infernizam a classe média e os trabalhadores. Ainda, por cima, brevemente, os proprietários terão que pagar IPVA mais caro, além de pedágios, como formas de restrição ao uso do carro, como sugerem os especialistas. Economizaria recursos para investir em linhas de metrô leve sobre trilhos. Essa é a sugestão da Globo extraída das reportagens.
O pragmatismo global estaria apostando nas montadoras, não de bens duráveis individuais, mas nos bens duráveis coletivos, que preenchem o cotidiano das cidades ricas norte-americanas, européias e japonesa?
As reportagens seriam justificativas para buscar outras alternativas de modelo de desenvolvimento econômico, em que o individualismo suicida pudesse dar lugar ao espírito coletivo, para tentar dar um equilíbrio ao processo esquizofrênico imperante no contexto da tecnologia infernal?
Pau que nasce torto…
A rede Globo não quis entrar nessa bola dividida, mas está, contraditoriamente, dentro do processo. Ficou na exposição do fato e na explicação dos técnicos para soluções de caráter técnico. Evitou a política. Por que?
Profissional e conservadora, a grande emissora escolheu personagens ponderados para serem os protagonistas das notícias, nos trajetos em que certamente, se mais gente fosse ouvida, vozes mais críticas poderiam ter ido ao ar. Seria demais?
O aspecto conservador das reportagens se expressou na falta de críticas políticas ao modelo de desenvolvimento econômico que gera a estrutura produtiva e ocupacional cuja sustentação impõe a destruição.
Sem a ponderação do contraditório, o trabalho ficou incompleto, para dar uma ampla avaliação do problema e da contradição que ele gera. Os aspectos positivos deram lugar aos negativos. O processo de negação em marcha não foi considerado em sua totalidade.
Sequer o caos urbano, condenado pelas reportagens como fruto do excesso de carros nas ruas dos grandes centros – no Rio, 50% da frota não têm onde estacionar – foi relacionado com as decisões tomadas pelo governo no âmbito da política industrial que poderão intensificar ainda mais o caos urbano. Miriam Leitão não compareceu para jogar esse papel. O pau que nasce torto…
Vida glamourizada
Afinal, foram dobradas, pelo governo Lula, as apostas na estrutura produtiva e ocupacional, cujos efeitos na vida urbana estão sendo fatais. Ocorrem 200 mortes por dia – mais de 70 mil por ano –, relatou Alexandre Garcia. Guerra civil. A representação do modelo expressa nos carros no caos do trânsito é sinônimo de destruição ambiental produzida pelo próprio modelo de desenvolvimento concentrador de renda e poupador de mão-de-obra.
As reportagens expuseram os efeitos, mas não discutiram as causas. O crédito direto ao consumidor, que bombeia as vendas de automóveis no mercado interno para compensar a queda das vendas externas, prejudicadas pela sobrevalorização do real, continua sendo a prioridade da política industrial, conforme ficou comprovada a Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP), lançada pelo presidente Lula. Reiteração de apostas nos efeitos das causas destrutivas.
De JK a Lula completaram cinco décadas em que todos os programas de desenvolvimento priorizam, com fartos subsídios, as indústrias montadoras, dada a horizontalidade que caracteriza seu perfil no contexto econômico nacional, conferindo-lhe grande poder de pressão sobre o governo.
As reportagens da Globo representaram um confronto com tais poderosos interesses, para, claro, dar lugar a outros, igualmente, poderosos interesses.
A montadora de automóveis teria que dividir com a montadora de metrô, de ferrovias, em nome da salvação da vida humana nos grandes centros urbanos?
Parece ser esse o sentido maior das reportagens, muito bem elaboradas, dentro do padrão de glamour global. A vida glamourizada, na apresentação do problema, tenta colocar o assunto, quase sempre, como algo exterior às preocupações individuais, para não romper o espírito individualista em favor do espírito coletivo, de forma abrupta.
Pancada federal
A pujança e a força do próprio problema, no entanto, falaram mais alto do que o glamour. As reportagens pisaram nas misérias individualistas e chamaram a atenção para a marcha ao caos.
O desdobramento dos debates, abertos pelo jornalismo global, que atraiu, imediatamente, para os mesmos, todas as demais emissoras, é inevitável, sob pena de perecer o próprio jornalismo.
A partir da década de 1950, o país foi ajustado para ser o grande ponto de venda internacional dos automóveis, depois que a indústria automobilística entrou em crise nos Estados Unidos, com o crack de 1929.
Ali ficou explícita a impossibilidade de a reprodução capitalista continuar se sustentando na produção dos bens duráveis de luxo tocados a crédito em meio à livre concorrência no compasso do padrão ouro intrinsecamente deflacionário.
Em 29, foram vendidos 5 milhões de automóveis. Havia 27 milhões de veículos compondo a frota. A derrocada financeira reduziu a produção para 900 mil/ano, a partir de 1930. Pancada federal.
Dependência da nova moeda
Somente 14 anos depois, em 1943, como destaca Lauro Campos em A crise completa – economia política do não, houve recuperação das vendas internas ao nível de 1929. Mas, aí, não seria mais a indústria automobilística o centro dinâmico do capitalismo mundial, como ocorreu até 1929.
A moeda estatal inconversível keynesiana entrara em campo para substituir o padrão ouro, a fim de puxar a demanda efetiva global capitalista.
Edificara-se a economia de guerra. O capitalismo cumpria a previsão de Marx: o sistema desenvolveria as forças produtivas até entrar em senilidade e passaria a desenvolver o seu contrário, as forças destrutivas, na guerra.
A moeda capitalista estatal inconversível que foge do equilibrismo orçamentário da economia neo-clásssica – da qual os comentaristas econômicas em geral ainda se encontram prisioneiros – daria, a partir de então, as cartas.
O Estado vira capital com a moeda estatal inconversível. A moeda ganha outra configuração, outra utilidade. Não é apenas meio de troca, é poder político. O poder cambial – fictício – fixa as relações e os termos de troca no cenário global.
A indústria automobilística passa a depender fundamentalmente dessa nova moeda, dos gastos governamentais em infra-estrutura – externalizando custos empresariais – para que os carros possam trafegar Brasil afora.
Resistência e receios
O entulho automobilístico, que virara problema no primeiro mundo pós-crise de 29 seria transplantado para o Brasil, conforme teoriza Lauro Campos. Os ricos exportariam as montadoras problemáticas, seus problemas.O ferro velho viria para o terceiro mundo, a fim de problematizar a questão econômica, social e política na periferia capitalista.
Os problemas, no primeiro mundo, democrático, sob capitalismo do laissez faire, geraram impasses políticos, com o avanço do comunismo.
Transferindo tais problemas para o terceiro mundo, o capital transplantado poderia proceder aí de forma diversa da prática democrática do primeiro mundo. O seu caráter autoritário anti-democrático teria livre curso na periferia capitalista, financiando ditaduras sanguinárias, para segurar as revoltas que produziria a inflação, decorrente do modelo econômico concentrador de renda transplantado.
JK entra na história com o transplante. Brasil, Argentina, México, África do Sul, Austrália etc. experimentam o mesmo fenômeno que caracterizaria o processo de reprodução do capital sob modelo industrial em crise transplantado do centro para a periferia, regado a dívida externa. Nascia o desenvolvimentismo que, para vingar, exigiu, no limite, ditaduras políticas.
Os efeitos da resistência popular à concentração da renda, de modo a gerar poder de compra na classe média, capaz de sustentar a dinâmica consumista dos bens duráveis de luxo transplantados ao custo JK, somados aos receios decorrentes do avanço da ideologia socialista-comunista, deram no que todos conhecem: ditadura.
Minas de ouro
O liberal Eugênio Gudin, em Reflexões e Comentários – 1970-1978, chamou JK de gastador, quando construiu Brasília, mas a jogada foi necessária para viabilizar a indústria automobilística no terceiro mundo. Rasgar estradas tornou-se imprescindível. Caso contrário, para que automóveis sem vias de tráfego no país continental? Tornou-se desinteressante investir em ferrovias.
As soluções racionais/nacionais, de modo a aproveitar o potencial e as vantagens comparativas brasileiras, foram engavetadas. Engordar o espírito Mauá não seria interessante para o capital externo então emergente. Fazia necessário, isso, sim, salvar as montadoras norte-americanas e européias, que haviam entrado em crise e deixado de dinamizar o capitalismo cêntrico, depois de 1929.
Gudin chama JK de gastador, segundo Lauro Campos, com certa razão, porque o presidente bossa nova não entendeu, na opinião de Gudin, que não precisava conceder tanto favor, dar tantos subsídios, promover tantas renúncias e perdões fiscais ao capital investidor naquele momento – o mais do mesmo que Lula repete. O inteligente economista liberal udenista estava dizendo indiretamente que os investidores viriam sem nenhuma vantagem. Só de virem já seria vantajoso. Seria como descobrir novas minas de ouro. JK, na opinião dele, extrapolou.
Superconcentração da renda
O símbolo do individualismo capitalista, desde então, conseguiu todos os favores, possíveis e imagináveis, diante dos governos de diferentes colorações ideológicas.
Tornou-se necessário concentrar a renda tributária nacional na região Sul e Sudeste, empobrecendo o norte, nordeste e centro-oeste, para formar mercado consumidor necessário ao consumo dos bens duráveis de luxo transplantados. A guerra fiscal de hoje é uma reação atrasada dos estados mais pobres à irracionalidade em que se transformou o sistema tributário implementado para sustentar a industrialização baseada na promoção do automóvel, agora, desancados pelas reportagens da Globo, como o vilão nacional.
Teria dito a Globo basta ao sanguessuguismo econômico nacional que engordou a industrialização paulista, depois sua disseminação pelo sul e sudeste, mas que se tornou irrespirável e ameaça à sobrevivência humana nos grandes centros urbanos descaracterizados, crescentemente, pela violência e instabilidade?
O golpe de 1964 – apoiado pela Globo e grande mídia em geral – foi uma reação conservadora para conter as forças sociais desatadas pela superconcentração da renda nacional de modo a dar sustentação consumista à indústria automobilística problemática que fora importada por JK a custo elevado, quando poderia, na avaliação de Gudin, ser melhor negociada.
Formigueiro total
O cenário da atração do individualismo estava lançado e seria alimentado a partir daí com a prioridade total à indústria automobilística. Lula é fruto dessa infra-estrutura econômica, que enxugou as riquezas nordestinas mandando seus filhos trabalharem nas fábricas paulistas.
A cabeça dele se adequa aos subsídios fartos que concedeu à indústria automobilística na última semana. Seu escudeiro, Miguel Jorge, ex-repórter do Estado de S. Paulo, ex-diretor de grande montadora, ex-diretor da Anfavea, que se transformou em conselheiro do Banco Santander, ninho dos grandes interesses que manipulam o processo de formação e distribuição da riqueza nacional, representa em essência a filosofia lulista elitizada. Os sindicalistas do ABC aplaudem. Está em jogo a indústria automobilística, que se propõe, a partir do Brasil, transformar-se em plataforma de exportação mundial, graças aos subsídios lulistas-juscelinistas, mais uma vez concedidos.
Essa estrutura, entretanto, passou a dar frutos amargos que a sociedade comodista colhe em forma de reclamações e doenças – que exigem gastos crescentes, reduzindo, ainda mais, a renda disponível para o consumo, e intensificando, conseqüentemente, a concentração acelerada da renda e a exclusão social em escala incontrolável.
Os últimos números do IPEA confirmam: 10% da população mais rica abocanham a riqueza dos 75% restantes. Do total da renda nacional, 70% correspondem aos rendimentos do capital; 30%, apenas, dos rendimentos do trabalho. O trabalho tornou-se estorvo para o capital, não ajuda mais na reprodução dos lucros, na escala necessária para ampliação da acumulação capitalista.
O descolamento do capital, da produção para a especulação, onde a margem de lucro é maior, demonstra porque os grandes industriais, hoje, estão virando, igualmente, banqueiros.
É essa renda excessivamente concentrada na especulação que está gerando consumo de luxo para as indústrias de bens duráveis, entupindo e tornando impossível a vida nas cidades.
Tal modelo recebeu, com certa moderação, xeque-mate da Globo, que, contraditoriamente, necessita dos anúncios das montadoras que vendem a crédito concedidos pelos bancos, também, grandes anunciados do oligopólio global. Formigueiro total. Os desdobramentos do assunto serão uma exigência do jornalismo.
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Jornalista, Brasília, DF