Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Estado de Direito fora da pauta

Mais uma vez o diário Valor (edição de quinta-feira, 14/7) saiu na frente, quando a repórter Marta Watanabe entrevistou o criminalista Antonio Sérgio de Moraes Pitombo sobre as prisões no caso Daslu. Segundo o especialista, não houve flagrante e não havia inquérito policial. Nenhuma condição, portanto, que pudesse dar base legal a uma prisão temporária. Havia, segundo o Ministério Público, uma investigação iniciada alguns meses antes.

Ouvir os advogados da empresária logo depois da prisão era uma providência óbvia. Todos cumpriram esse roteiro. O diferencial de Marta Watanabe foi procurar, no mesmo dia, um criminalista que pudesse falar em tese. A primeira cobertura sobre a ação policial contra a Daslu saiu com esse componente a mais.

No dia seguinte, a repórter ampliou o material, citando, além de Pitombo, os advogados Francisco Nogueira de Lima, tributarista, e Dora Cavalcanti. A nova reportagem foi mais ambiciosa, cobrindo os casos Daslu e Schincariol. Segundo os entrevistados, as possibilidades de condenação penal por sonegação são remotas. O processo penal, segundo lembrou Nogueira de Lima, depende da conclusão de processo administrativo em que se julga a validade da atuação fiscal.

Mesmo depois de concluída essa etapa e estipulado um valor a ser pago, o contribuinte condenado pode liquidar o assunto recolhendo o dinheiro devido. Esse entendimento, disse Dora Cavalcanti, tem prevalecido em julgamentos do STF.

Direção correta

Já na primeira cobertura sobre a Daslu, o Valor havia publicado, no pé da página, uma pequena matéria de uma coluna sobre a prisão dos diretores da cervejaria Schincariol, um mês antes. Também essa operação havia sido espetaculosa, com grande movimentação policial acompanhada pela TV e pelos jornais. No entanto, como lembrou o jornal já na primeira matéria, a fiscalização da cervejaria pela Receita Federal ainda não está concluída e não houve autuação. Não tendo havido conclusão do trabalho do Fisco, também não havia base para denúncia pela Promotoria.

Se esses advogados estiverem corretos – e eles citam decisões judiciais em seu apoio –, a violência cometida nas duas operações terá sido bem mais grave que a truculência mostrada em cores nas imagens da tv e dos jornais.

O Valor publicou também, na continuação da cobertura, na sexta-feira, os argumentos da desembargadora Suzana Camargo, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, para não revogar a prisão de Antônio Carlos Piva Albuquerque, irmão da proprietária da Daslu, Eliana Tranchesi, e do contador Celso de Lima. Segundo a desembargadora, havia contra os dois sérios indícios de importação fraudulenta e de crime contra a ordem tributária. A prisão temporária, de acordo com a mesma argumentação, seria necessária para o bom andamento das investigações.

A Folha de S.Paulo citou, no primeiro material sobre o caso, a opinião do presidente da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), Luiz Flávio D’Urso. Segundo ele, o Estado tem outros meios de cobrar o imposto devido e só em casos excepcionais deve recorrer a uma megaoperação. A iniciativa do jornal foi na direção correta, mas o resultado foi modesto, quando comparado com as opiniões técnicas coletadas pelo Valor.

Falta de empenho

De modo geral, os jornais limitaram-se a descrever a operação policial e seus desdobramentos. Fizeram a costumeira repercussão, ouvindo políticos e socialites, e entrevistaram os advogados da empresária. Responderam o previsível: que sua cliente era vítima de uma injustiça. Os jornais, além disso, publicaram o protesto da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), que chamou a atenção para a truculência do espetáculo e defendeu o respeito à lei. Curiosamente, nem essa manifestação da Fiesp parece haver provocado um estalo na cabeça de pauteiros e editores.

Como entretenimento, a maior parte da cobertura funcionou bem. Os detalhes pitorescos foram narrados. Mostrou-se a indignação de personagens quase sempre interessantes, como o senador Antônio Carlos Magalhães. Alguns jornais contaram, em retrancas auxiliares, a história da Daslu.

A Folha e o Globo publicaram o material no caderno de Economia. O Estado de S.Paulo, no caderno ‘Metrópole’, talvez pela dimensão policialesca da história. Só um jornal importante, a Gazeta Mercantil, tratou a história com muita discrição. Na primeira página houve apenas a chamadinha na seção ‘Primeiro Plano’. Enquanto os outros davam a notícia, na primeira página, como manchete, submanchete ou pelo menos como chamada bastante visível (caso do Valor), a Gazeta destacou: ‘Câmbio é o maior risco dos índices de preços’.

A cobertura do espetáculo era provavelmente o que desejavam os promotores da operação. Eles deviam saber que políticos, empresários e socialites poderiam criticar a ação escandalosa. Mas talvez apostassem num balanço final favorável, com aplausos por mais 0um ataque aos ricos e poderosos.

O que a imprensa poderia fazer, para não se limitar a uma prestação de serviço aos promotores da truculência, seria examinar seriamente a legalidade do espetáculo e de tudo que as autoridades fizeram naquele dia. Não caberia à imprensa dar a palavra final sobre o assunto, mas seria socialmente útil apresentar uma análise jurídica mais ou menos detalhada. Só um jornal se empenhou nisso.

Lembrar que os pobres são vítimas freqüentes de truculência não altera os fatos. Num Estado de Direito, não tem sentido aplaudir a violência quando as vítimas estão do outro lado – seja qual for esse outro lado.