Agora que praticamente todos já escreveram o que quiseram sobre o filme A paixão de Cristo, de Mel Gibson, atrevo-me a dizer alguma coisa a respeito, e fazer uma denúncia.
O relato dos Evangelhos está aí, à disposição de quem o queira transpor para a literatura, a pintura, a escultura, o teatro, o cinema. E tudo isso tem sido feito, agradando ou desagradando a cristãos e judeus, ateus e fiéis.
Mel Gibson foi apenas mais um a explorar o tema (e muito bem explorado). Ele e sua equipe, a propósito, têm perícia de sobra para realizar filmes do jeito que quiserem, com os efeitos que bem desejarem. Recursos e competência técnica não lhes faltam.
Que há imprecisões históricas em A paixão de Cristo, isso é fácil constatar. Os pregos furarem a palma das mãos é um exemplo, quando se sabe que atravessaram os pulsos, único modo de o corpo crucificado permanecer suspenso. Outro exemplo: o fato de Cristo carregar a cruz inteira e não apenas a trave superior. Trata-se de licenças cinematográficas, que chegam ao seu limite na cena exagerada da flagelação.
Estímulo irracional
O realmente preocupante, porém, é saber que, desde sua estréia, o filme foi usado por movimentos cristãos e católicos para manipular o sentimento de seguidores e simpatizantes. Sobretudo dos jovens. A crueldade terrível das cenas sangrentas (tidas como expressão da verdade) é usada para despertar o sentimentalismo e, com ele, uma forçada contrição.
Uma instituição católica espanhola tem apresentado em seus centros espalhados pelo mundo (há vários no Brasil) cópias piratas deste filme para que seus membros, habitualmente proibidos de irem ao cinema, assistam, e se arrependam de um dia terem alimentado a menor dúvida sobre o caminho que seguiram. Assistam, e assumam como pecados de soberba não obedecerem cegamente às instruções da instituição.
Os fins justificam os meios. Os meios justificam os fins.
Jesus Cristo lançando mão da chantagem emocional: ‘Vocês têm que ser bonzinhos, pois olhem só como Eu sofri por vocês’.
Um filme é um filme e não verdade revelada. Na ótica dos manipuladores, porém, foi a grande chance de usar esta obra para, com a conivência de seus criadores, operar outras obras, fundamentar fundamentalismos, radicalizar posições radicais.
É lamentável ver o cinema reduzido a estímulo irracional. É condenável que grupos católicos e cristãos tenham se libertado da argumentação inteligente e optado pela mais elementar apelação.
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Doutor em Educação pela USP e escritor