Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Inovações na imprensa em tempos de revoluções tecnológicas

Começo com um jornal antigo. Em seguida, mudarei de assunto.




Agora, conforme previamente anunciado, afasto-me do assunto. E, relativamente longe dele, permanecerei por longas e demoradas linhas. Vamos lá.


Gadgets e outros engenhos da técnica


Vivemos uma era de fetiches tecnológicos, o que não é novidade. Também no mundo da comunicação e no planeta do jornalismo, vivemos tempos de fetiches tecnológicos.


Gadgets, aparelhinhos eletrônicos, microissos, nanoaquilos, cyber-não-sei-quês de todos os tipos fascinam audiências e roubam a cena – roubam até os bastidores. O modo como os sujeitos se entendem sai de foco e, agora, o que conta é o modo como a tecnologia determina os caminhos pelos quais podem fluir as tentativas dispersas de comunicação. A tecnologia está para o fluxo das idéias assim como as leis de trânsito e o traçado das ruas e avenidas estão para o fluxo de automóveis.


A supremacia da técnica transformada ela mesma em logos – daí o sentido sombrio da palavra ‘tecnologia’ – instaura o domínio das máquinas na comunicação entre pessoas. Os seres humanos entram aí como softwares periféricos. Robôs movidos a sangue. O que se chama de interatividade, quase sempre, não passa de uma operação da cibernética, uma operação cujo circuito atravessa neurônios com a mesma desenvoltura com que trafega pelos eletrodos. Essas interações não envolvem o diálogo entre imaginações criadoras e autônomas. Ao contrário, inibem o diálogo, obstruem a emergência de uma razão compartilhada. O médico que ajusta os sensores ao corpo do paciente para que o aparelho possa melhor flagrar os desvios do organismo em exame não é um sujeito (médico) em contato com outro sujeito (paciente), mas um agente mecânico que expõe o corpo à ação da máquina. Não há diálogo nisso aí. O correntista aturdido, às voltas com o pagamento de um boleto via internet, realiza fluxo de caixa, não toma parte em diálogo nenhum.


O diálogo aproxima pontos de vista distintos e tece compatibilidade entre perspectivas culturais originais. A interatividade, não. Ela é um contato de outra natureza, que apenas precipita a passagem da corrente pelo grande circuito integrado de fios, antenas – além de olhos, cérebros e músculos humanos. A interatividade não inventa o inusitado. O imprevisto e o imprevisível não cabem nos call centers. Aliás, o que não figura na cartilha dos atendentes causa tilt no sistema. Bug. ‘Sinto muito, senhor, mas meu sistema caiu.’ Os cyborgs não têm senso de humor.


As pessoas se sentem embarcadas num trem ultraveloz, numa viagem que não entendem bem. Tentam e fracassam nos esforços de entendimento. A sensação de velocidade que se eleva sem freios, em aceleração vertiginosa, parece impedir a observação e a reflexão. No mais, quem é que precisa disso, de reflexão? Não há como ficar de fora do trem. E, estando dentro, não há como dominar o sentido de tanto movimento. O futuro vem como num bombardeio, em fachos de luz em sentido contrário, zunindo, atordoando. É difícil descrever o futuro. Mais difícil ainda é descrever a violência com a qual ele se atira contra nós.


Uma descrição, contudo, talvez faça sentido. Vale a pena reproduzi-la:



‘Estamos todos embarcados, queiramos ou não, numa era que revoluciona o pensamento e a própria vida. O progresso avança impetuosamente, com imensa aceleração, percorrendo em décadas os avanços que antes custavam séculos ou milênios.’


Sim, eis aí um bom retrato do presente: uma boa mirada para o futuro.


Transformações sobre transformações


Essa descrição do nosso espantoso presente-futuro, que tem ares de ter sido pronunciada há poucas horas, foi sintetizada há anos. Ou melhor, há algumas décadas. Ela foi publicada há exatos 104 anos, num texto lançado em 1904. Seu autor é o tycoon da mídia americana Joseph Pulitzer (1847-1911). Em seu tempo, não havia computadores, mas o avanço da tecnologia não era menos avassalador. Já praticamente cego, escrevendo com as cordas vocais – ele ditava o texto para o seu secretário –, Pulitzer registra seu maravilhamento:



‘A população do país continua crescendo a taxas que equivalem a anexar um Canadá inteiro a cada quatro anos. Nova York promete desbancar Londres em vinte ou trinta anos como a cidade mais populosa do mundo. Aproximadamente um milhão de imigrantes desembarcou na América no ano passado, no maior fluxo humano da era moderna. Trens elétricos viajam a 150 milhas por hora, proporcionando um avanço no transporte ferroviário comparável aquele representado pelo a advento das carruagens em 1833. O telégrafo sem fio [wireless] está apenas começando e o rádio vem revelando possibilidades insuspeitadas.’


Há pelo menos um século, portanto, o futuro espanta e fascina praticamente do mesmo modo. Já faz tempo que o futuro hipnotiza. Já faz tempo que tudo muda o tempo todo. Tanto que é melhor dizer outra vez o que já foi dito, mas dizer de outro modo: tudo se revoluciona a cada minuto, mas a forma pela qual tudo se revoluciona guarda um certo padrão, uma constância. Como há um século.


Portanto, quando digo que não é novidade que vivemos uma era de fetiches tecnológicos, não me valho apenas de uma força de expressão. Não é novidade mesmo. Faz mais de um século que não é novidade. Pelo menos um século.


A gente sente que o livro está morrendo


Passo agora às palavras de outro observador da aceleração dos novos tempos. Desta vez recorro a um brasileiro. Abro aspas uma vez mais:



‘A atividade humana aumenta, numa progressão pasmosa. Já os homens de hoje são forçados a pensar e executar, em um minuto, o que seus avós pensavam e executavam em uma hora. A vida moderna é feita de relâmpagos no cérebro, e de rufos de febre no sangue. O livro está morrendo, justamente porque pouca gente pode consagrar um dia todo, ou ainda uma hora toda, à leitura de cem páginas impressas sobre o mesmo assunto.’


Quem escreveu isso? Olavo Bilac (1865-1918). Quando? Em 1903. Seu texto foi publicado em 1904, na revista Kosmos número 1 [recentemente ‘descoberta’ por uma equipe de pesquisadores da Emporium Brasilis — Memória e Produção Cultural, coordenada por Wladimir Saccheta]. As transformações cada vez mais velozes e mais irreversíveis desenham a face mutante da nossa era. O que, aliás, foi bem registrado por dois jovens alemães, cada um deles com cerca de 30 anos:



‘Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de idéias secularmente veneradas, as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes mesmo de ossificar-se.’


Logo na abertura do parágrafo seguinte, Karl Marx e Friedrich Engels cunharam a frase que atravessaria os séculos sem perder o frescor:



‘Tudo que é sólido desmancha no ar.’


Nessa mesma passagem, os autores do Manifesto Comunista, de 1848, pontificam, bem ao seu estilo:



‘A burguesia não pode existir sem revolucionar, constantemente, os instrumentos de produção e, desse modo, as relações de produção e, com elas, todas as relações da sociedade’.


Os militantes supostamente revolucionários que me perdoem, mas a revolução é um mito – um mito burguês.


A tecnologia – a técnica alçada à condição de discurso que fala por si mesmo, já desgarrado de qualquer controle humano ou humanista – é a mais nova encarnação desse mito. Ela vive de promover revoluções sucessivas, de desmanchar tudo o que é sólido, e não apenas isso. Agora, o que é virtual também se desmancha – no sólido. Que por sua vez desmorona de novo. No vácuo. Não há ponto de repouso, ou de fixação, que não seja a voragem elétrica de bits, cuja direção é um mistério.


E o jornalismo?


No meio da parafernália de aparelhinhos que viram sucata antes de terem sido absorvidos pela sociedade, os jornalistas são intimados a responder: onde pode estar a inovação na imprensa em tempos de revoluções tecnológicas?


Um lugar para a escola


A inovação no jornalismo não está nos aparelhinhos, para desconsolo de tantos e quantos. Não está nos brinquedos que se compram em free-shops e não está no som surround (surrealista?) das radiolas hodiernas, radiolas com plasma. A inovação no jornalismo, quando ela acontece, acontece onde pode florescer a autonomia do cidadão, a formação livre de sua opinião e sua vontade, ali por onde afloram as idéias capazes de indagar sobre o que ainda não existe. Se há lugar para o pensamento, para além das grades da tecnologia, aí o jornalismo também terá lugar – ainda que ele não possa e nem pretenda abarcar o pensamento.


Volto, então, a Joseph Pulitzer. O livro do qual extraí os trechos citados aqui não tem nada a ver com a apologia das máquinas. Ele não defende a subordinação do jornalismo às razões (ou ao logos) da técnica. Nesse texto, The School of Journalism in Columbia University, o autor propõe uma saída na direção aparentemente oposta, como se corresse na direção do passado. Ele defende a transformação do jornalismo, até então visto como um ofício meramente artesanal, ou menos que isso, em uma profissão baseada num curso universitário. Não qualquer curso. Ele sugere um curso especialmente concebido para formar profissionais de imprensa. Ele argumenta que, para estar à altura dos desafios de um mundo em que as revoluções constituíam – e constituem – a regra, o jornalista não podia ser meramente um ‘prático’.


Movido por essa obsessão – da qual todos nós, profissionais de imprensa, somos devedores de algum modo –, ele dedicou os 15 anos finais de sua vida a convencer a Universidade Columbia – e, às vezes, alguma outra – a criar uma faculdade de jornalismo. Claro que, na época, muitos diziam que esse negócio não passava de tolice (é o que muitos dizem até hoje). Foi difícil e demorado o processo de vencer as resistências, mas ele persistiu. Em 1904, doou 2 milhões de dólares para a construção da Escola de Jornalismo, dando um passo decisivo na longa caminhada. Verdadeiramente longa: a faculdade só começou a funcionar em 1912 – no ano seguinte ao da morte de seu maior inspirador, animador e financiador.


O que chama a atenção nesse texto histórico – republicado recentemente e disponível na internet (basta buscar pelo nome do livro) – é que, em vez de procurar na especialização técnica a modernização dos jornais, o magnata foi encontrá-la na qualidade das pessoas. E, para fomentar a qualidade das pessoas, foi atrás da cultura clássica e do pensamento democrático, no qual se enraíza a razão de ser da imprensa. Em lugar de procurar saídas nas novidades tecnológicas, preferiu reabilitar o humanismo. Nem mesmo administração ele recomendou que os aspirantes à profissão estudassem – no que talvez tenha exagerado. Apenas economia, ética e assim por diante.


Ainda hoje, no entanto, há quem recrute trainees para as redações como se contratasse programadores de informática. Querem saber que softwares os candidatos dominam e mal prestam atenção no olhar pessoal que eles jogam sobre a realidade. Ora, o que diferencia jornalistas são as perguntas originais que eles sabem fazer, são suas habilidades de expressão, o modo como lidam com a linguagem, sua ‘autonomia conceitual’ – para usar aqui a expressão de Claudio Abramo. Intimidades com tecnologias são desejáveis, mas jamais podem servir de alicerce.


Pulitzer, parece, sabia o que era necessário para um jovem jornalista. E teve a generosidade de deixar o mapa da mina para as gerações que o sucederam. Segundo o mapa que nos legou, o tesouro está na escola.


Reinventando o jornalismo


Do ponto de vista da imprensa, maquininhas não inovam necessariamente. Não é aí que está a inovação. Mudanças que permitam aos cidadãos atingir níveis mais altos de emancipação e de informação, mudanças que gerem inclusão social e política nos públicos ativos, dotados de iniciativa – estas, sim, podem estar associadas a progressos no jornalismo.


Por exemplo: a invenção da revista semanal é uma inovação fundamental na história da imprensa. Não obstante ela não tenha dependido diretamente de uma novidade bombástica da indústria gráfica, foi uma grande inovação. A invenção da revista semanal, cujo marco é a Time, criada em 1923 por dois jovens estudantes de direito, Henry Luce e Briton Hadden, abriu novos e amplos horizontes para o exercício de interpretação das notícias e beneficiou um número expressivamente maior de leitores. Trouxe mais gente para o debate público. Elevou a qualidade dos argumentos na esfera pública. A revista semanal se impôs como inovação discursiva do próprio jornalismo porque se revelou também uma inovação nas práticas sociais de processamento e de circulação da informação. Apenas marginalmente foi uma inovação, por assim dizer, técnica.


Em resumo, nem toda ‘revolução’ sob a ótica de um engenheiro representa uma ‘revolução’ no jornalismo – e nem tudo aquilo que expande a realização dos ideais da imprensa na democracia depende de inventos tecnológicos.


De volta às figuras


Olhando em retrospectiva, poucos souberam inovar como Joseph Pulitzer. Ele comprou o New York World quando o jornal era deficitário, com 16 mil exemplares de circulação, e o transformou no maior jornal de Nova York, com 1 milhão e meio de tiragem diária. Como ele fez isso? Com agressividade jornalística e renovação da linguagem. Seu World empenhou-se na cobertura dos desvios de conduta de políticos. Correu riscos. Muitos o acusaram – e não se pode dizer que todas as críticas fossem injustificadas – de sensacionalismo e de ‘imprensa marrom’. Os repórteres de Pulitzer levantavam os aspectos menos ‘nobres’ da aventura humana, que na opinião de outros ‘não mereciam ser publicados’, e os estampavam no jornal. Fiscalizavam o poder e desnudavam sagas de pessoas comuns. Sem esquecer, por certo, da linguagem. Sem esquecer de inovar a linguagem.


No World, a linguagem ganhou reinvenções que ainda hoje encantam. Nas edições dominicais, as páginas eram magistralmente ilustradas. A imagem se tornava parte integrante do idioma e da gramática do jornal. O resultado ainda hoje traz ensinamentos.


Reproduzo a seguir a mesma imagem que pus na abertura deste artigo (para não submeter você, improvável leitor que tenha me acompanhado até aqui, ao esforço de ter que rolar a página para cima outra vez):




Trata-se de uma capa da revista de domingo do World, publicada em 20 de janeiro de 1907. O que temos aqui é um senhor infográfico – muito antes da invenção do Macintosh. Uma pequena obra-prima. Há um bom artigo de Jack Shafer, na Slate, sobre essa fase gloriosa dos jornais de Pulitzer (www.slate.com/id/2126420), a propósito do lançamento do livro The World on Sunday: Graphic Art in Joseph Pulitzer’s Newspaper (1898-1911).


Por que digo que se trata de infografia, ou ao menos de uma infografia avant la lettre? Note o leitor que toda a página se estrutura em torno de uma ilustração e que a escala de grandeza é rigorosamente explicada por um gráfico, no canto inferior esquerdo. A linguagem infográfica está praticamente toda aí. O crescimento vertical de Nova York não poderia ser mais bem demonstrado. Diante disso, a leitura do texto ganha um estímulo praticamente irresistível.


Note, enfim, que o tema não é outro que não a chegada estonteante dos novos tempos, do progresso, dos arranha-céus. Não apenas o tema: também a linguagem da página lida com a fronteira do futuro: a infografia viria, décadas mais tarde, com a força de uma superinovação. Aqui, em 1907, ela já está em fase de ensaio. Um ensaio memorável.


A seguir, mais uma página que se tornaria clássica, esta publicada em 13 de agosto de 1911:




De vez em quando, olhar o passado é um modo de surpreender o futuro, quero dizer, de dar uma espiadela no futuro pelo retrovisor invertido. Apenas de vez em quando. Também sobre isso, Joseph Pulitzer nos deixa lições valiosas, seja no modo como inovou (‘revolucionou’) a imprensa com base nos ensinamentos das artes plásticas (seu ensaio de infografia dialoga com a pintura, não com máquinas), levando-a adiante dos marcos em que se encontrava, seja pelo modo como enxergou, na cultura clássica, os elementos para a formação dos profissionais que viriam depois dele. Suas idéias sobre uma faculdade de jornalismo e suas páginas ilustradas ainda hoje servem de modelo. Umas e outras não dependiam de nada além da palavra, de lápis, pincel e um pouco de tinta: supremas ferramentas da velha técnica – aquela que era sinônimo de arte.


A inteligência (de suas idéias) e a beleza (de suas páginas) – ou a inteligência gráfica (de suas páginas) e a beleza formal (de suas idéias) sobreviveram ao computador.


Por fim, mais um comentário sobre as páginas aqui reproduzidas. São imagens fixas, sem dúvida, imagens sobre papel-jornal. Ainda assim, conseguem atravessar o século 20, incólumes, movendo-se pela História afora. O que há de surpreendente, nesse deslocamento, é que elas viajam sem se deteriorar. Permanecendo novas. Esse tipo de imagem, quando viaja desse modo através do tempo, avança na direção do futuro e o revela. Até hoje. É só olhar que você vê.


 


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Formado em direito e jornalismo pela Universidade de São Paulo, é doutor em Ciências da Comunicação pela mesma universidade e autor de alguns livros, entre eles Sobre Ética e Imprensa (Companhia das Letras, 2000); foi presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007