Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Huntington, Friedman e desinformação

Thomas L. Friedman, articulista do jornal The New York Times, continua sua jornada em nome da civilização ocidental contra o Oriente, especialmente representado pelos muçulmanos. No artigo ‘Para um problema islâmico, uma solução islâmica’, publicado na Folha de S. Paulo, dia 9 de julho, Caderno Mundo, fica clara essa posição de choque de civilizações entre o ‘Ocidente democrático e livre e o Oriente muçulmano e fanático’, semelhante às teorias de Samuel Huntington, cientista social americano. Foi ele quem publicou o livro Choque de civilizações na última metade da década de 90, propondo que

‘(…) a política mundial está sendo reconfigurada seguindo linhas culturais e civilizacionais. Nesse mundo, os conflitos mais abrangentes, importantes e perigosos não se darão entre classes sociais, ricos e pobres, ou entre outros grupos definidos em termos econômicos, mas sim entre povos pertencentes a diferentes entidades culturais. As guerras tribais e os conflitos étnicos ocorrerão no seio das civilizações. Entretanto, a violência entre Estados e grupos de civilizações diferentes carrega consigo o potencial para uma escalada na medida em que outros Estados e grupos dessas civilizações acorrem em apoio a seus ‘países afins’. O sangrento choque de clãs na Somália não apresenta nenhuma ameaça de um conflito mais amplo. O sangrento choque de tribos em Ruanda tem conseqüências para Uganda, Zaire e Burundi, mas não muito além desses países. Os sangrentos choques de civilizações na Bósnia, no Cáucaso, na Ásia Central e na Caxemira poderiam se transformar em guerras maiores.’ (Choque de Civilizações)

Friedman procura seguir esta trilha ao tentar explicar os atentados em Londres na matéria.

‘As explosões de bombas anteontem no centro de Londres são profundamente perturbadoras. Em parte porque um ataque em nosso país-mãe e aliado mais próximo é quase como um ataque a nosso próprio país, e em parte porque é possível que um dos ataques tenha sido suicida. Isso é profundamente preocupante porque as sociedades abertas dependem da confiança – confiar, por exemplo, que a pessoa ao seu lado no ônibus não esteja usando dinamite amarrada ao corpo. Os ataques também são profundamente perturbadores porque, quando jihadistas levam sua loucura ao coração de nossas sociedades abertas elas nunca mais voltam a ser tão abertas quanto antes. Todos perdemos um pouco de liberdade anteontem. Quando ataques em estilo jihadista acontecem em Riad, é um problema de muçulmanos com muçulmanos – para a Arábia Saudita, é um problema de polícia. Mas, quando acontecem no metrô de Londres, tornam-se um problema de civilizações. De repente, cada muçulmano que vive numa sociedade ocidental torna-se suspeito, e os países ocidentais sentem-se tentados a reprimir suas próprias populações muçulmanas ainda mais. Isso é profundamente perturbador.’

Sua preocupação com os muçulmanos parece tão sincera, mas nem tanto. Continuando:

‘Quanto mais as sociedades ocidentais olharem seus próprios muçulmanos com desconfiança, mais tensões internas serão criadas, e mais a juventude muçulmana já distanciada do resto do país se sentirá alienada dele. Foi exatamente isso que Osama bin Laden quis com o 11 de Setembro: criar um abismo imenso entre o mundo muçulmano e o Ocidente. O momento, portanto, é crítico. Todos precisamos fazer tudo o que pudermos para limitar as conseqüências desses ataques em nossas civilizações. Mas isso não será fácil, porque, diferentemente do que aconteceu após o 11 de Setembro, não há alvo óbvio contra o qual retaliar. Não existem campos de treinamento terroristas óbvios no Afeganistão que possamos atingir com mísseis de cruzeiro. A ameaça da Al Qaeda viveu uma metástase e se dividiu em franquias, já não é mais vertical, não é algo que possamos atingir de frente. Virou uma coisa horizontal, chata e amplamente distribuída que opera através da internet e de células pequenas. Como não há alvo óbvio nem policiais suficientes para cada abertura numa sociedade aberta, ou o mundo muçulmano começa a realmente reprimir, inibir e denunciar seus próprios extremistas – se ficar comprovado que foram eles os responsáveis pelos atentados de Londres –, ou o Ocidente o fará por eles. E o Ocidente o fará da maneira rude e grosseira: proibindo-lhes a entrada, negando-lhe vistos e fazendo com que todo muçulmano que vive em seu meio seja visto como culpado até ser comprovada sua inocência.’

Negar vistos já nega, dificultando ao máximo a migração de povos oriundos da África, Oriente Médio, Ásia, América Latina etc. para Europa ou Estados Unido à procura de trabalho e melhores condições de vida. Ou ele desconhece essa realidade? Um jornalista como ele! Será possível? Finalizando:

‘E, porque isso seria um desastre, é essencial que o mundo islâmico desperte para o fato de que tem uma seita de morte jihadista em seu seio. Se ele não combatê-la, ela contaminará as relações islâmico-ocidentais. Só o mundo muçulmano é capaz de derrotar essa seita de morte. É preciso uma aldeia. O maior fator a restringir o comportamento humano nunca é a polícia ou uma guarda de fronteira, mas aquilo que uma cultura e uma religião consideram vergonhoso, o que a aldeia e seus líderes dizem ser errado ou proibido. Muita gente disse que os atentados suicidas palestinos foram a reação espontânea da juventude palestina frustrada. Mas, quando os palestinos decidiram que era seu interesse um cessar-fogo com Israel, os atentados pararam. A aldeia muçulmana tem estado em falta quando se trata de condenar a loucura dos ataques jihadistas. Quando Salman Rushdie escreveu um romance polêmico envolvendo o profeta Muhammad, ele foi condenado à morte pelo líder do Irã. Mas até hoje nenhum clérigo ou organismo religioso muçulmano importante lançou uma ‘fatwa’ condenando Osama bin Laden. Alguns líderes muçulmanos já aceitaram o desafio. Na semana passada, o rei Abdullah 2º recebeu na Jordânia uma conferência de pensadores e clérigos muçulmanos moderados que querem pegar sua fé de volta dos que tentam seqüestrá-la. Mas é preciso que o movimento cresça e se difunda.’

Quase igual ao Iraque. O país foi destruído pelas forças armadas anglo-americanas e agora, que a rebelião está explodindo em todos os cantos, querem passar parte considerável do controle e da repressão aos rebeldes aos próprios iraquianos. Que morram eles, é o recado.

Friedman continua batendo na mesma tecla desde o 11 de Setembro. De início, apoiou claramente as medidas punitivas, vingativas e patrióticas dos EUA de Bush contra o Afeganistão e o Iraque, assim como as invasões militares e as conseqüentes ocupações. Fez coro aos discursos presidenciais de que era preciso acabar com a ameaça de Saddam Hussein, das armas de destruição em massa e das ligações do ditador iraquiano com bin Laden. Tudo isso se mostrou falso, e o que ficou até agora de concreto é uma ocupação militar ineficaz nos dois países, aliada a uma política genocida americana da população iraquiana e denúncias constantes de torturas dos militares dos EUA contra presos muçulmanos, sejam terroristas, combatentes ou civis inocentes.

Nenhuma linha em seus artigos sobre os interesses americanos na produção e na comercialização do petróleo iraquiano, nenhuma informação sobre a aliança político-militar com Israel para viabilizar o controle do Oriente Médio, nada sobre as ameaças americanas veladas ou não de invadir o Irã, em suma, não fossem as diferenças culturais entre as duas civilizações, a ‘ocidental cristã e democrática e a oriental muçulmana e fanática’, não haveria como entender tanta violência, invasões militares, genocídios, torturas, atentados etc. Na realidade, Friedman apenas representa o pensamento conservador americano que faz de tudo para colocar as culpas nos outros. Para consumo interno e externo, em alguns casos, os EUA estão sempre defendendo a democracia e o modo de vida americano para o mundo livre.

São eles, os muçulmanos fanáticos e sua cultura estranha, os culpados e os responsáveis pelo que está acontecendo no mundo civilizado. Não fosse essa capacidade de morrerem, atando dinamite a seus corpos para explodirem em qualquer lugar onde haja inocentes, não haveria atentados nem em Londres nem em qualquer lugar. Pouco importa se as forças armadas americanas usam de alta tecnologia para destruir um país e um povo. Pouco importa que as forças armadas inglesas, aliadas dos americanos, façam o mesmo no Iraque. A Itália de Berlusconi, outro país aliado dos EUA e com forças militares no Iraque, pretende retirar seus soldados até o fim do ano. Como ficaria, então, essa quebra de protocolo ou esse acordo de cavalheiros civilizados, segundo Huntington e seu alter-ego Friedman, caso os italianos saiam do Iraque?

Os artigos dele refletem, de maneira geral, o comportamento da imprensa americana nesse cenário pós-11 de Setembro. Tanto o NYT quanto outros veículos de imprensa dos EUA não aprofundam nada que possa colocar em xeque os interesses da ‘civilização americana’. São poucos os veículos mais críticos e, mesmo assim, quando têm essa postura, a preocupação maior é com a volta dos soldados americanos do Iraque. A rejeição a Bush, que tem crescido nos EUA, tem mais a ver com a incapacidade militar das forças armadas do país em derrotar os combatentes iraquianos do que com qualquer outra coisa. Além do aumento das baixas entre os soldados – mortos e feridos –, a própria violência decorrente da rebelião iraquiana contra as forças de ocupação ajuda a incrementar cada vez mais na população do país, principalmente nas camadas divulgadoras de opinião e nas elites, uma postura crítica à política externa de Bush.

Talvez essa mudança de comportamento faça com que a mídia americana mude a ótica das suas informações. Talvez passe a ser mais investigativa, divulgando os fatos como eles são, e não mais meros repetidores de releases oficiais. Se isso acontecer, talvez até uma figura conservadora e de direita como Friedman passe a escrever seus artigos de uma maneira um pouco diferente, dando corretamente os nomes aos bois. Saber disso ele sabe. Informar corretamente é outra história.

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Jornalista