Os jornais do mundo inteiro noticiaram o arrastão que ocorreu na praia de Carcavelos, em Portugal, em 10 de junho passado [veja remissão abaixo para matéria do OI]. A notícia ganhou espaço de diferentes maneiras. Todavia, oculto do resto do mundo foi o modo como Portugal se referiu ao ocorrido.
No pequeno país, o fato ficou conhecido como ‘arrastão à brasileira’, mesmo sem haver um único brasileiro envolvido entre os questionáveis 500 participantes. Com isso, Portugal importou não somente a palavra ‘arrastão’ para retratar o segundo grande episódio do tipo (o primeiro foi em 1996), mas também o lado pejorativo da palavra, desabonando propositalmente a imagem do Brasil. E, assim, esse título correu de boca em boca.
O modo como Portugal procurou esquivar-se da responsabilidade foi ainda pior para com os filhos do continente africano. Na tentativa de amenizar a situação, o presidente português Jorge Sampaio visitou a Cova da Moura, um chamado ‘bairro problemático’ de Lisboa, composto basicamente por portugueses com ascendência africana. A expressão ‘bairro problemático’ é um eufemismo para designar as favelas que margeiam Lisboa.
Em reação ao discurso presidencial, o diretor do prestigiado jornal Expresso, edição de 25 de junho, afirmou em sua coluna:
‘Depois de um acontecimento que, bem ou mal, enervou o país, levando muita gente a indignar-se à boca pequena contra os ‘gangs’ de jovens africanos que actuam como bandos de delinquentes, Jorge Sampaio teria de ponderar muito bem o discurso…A ida do Presidente à Cova da Moura, naquele momento, era a ocasião propícia para abordar de frente o problema da delinquência praticada por jovens negros.’
Sobre esse trecho, ressaltam-se dois equívocos. O primeiro, de relacionar jovens africanos ao episódio do dia 10. O segundo, de presumir que a delinqüência é decorrente da presença de jovens negros no país.
Em sua visita, Jorge Sampaio condenou o racismo e a xenofobia. Fez o discurso correto e foi fortemente criticado. Ainda na mesma coluna:
‘Condenar o racismo é bonito mas não serve de nada… Na Cova da Moura, Sampaio perdeu a oportunidade histórica de dizer: Portugal acolhe os imigrantes de braços abertos mas não tolerará a delinquência nem o crime. O Estado português será implacável no combate àqueles que traiam a hospitalidade do país que os acolheu, não respeitando as suas leis e enveredando por comportamentos marginais… O Estado não será complacente com a criminalidade praticada por jovens de outra cor. (…) Na Cova da Moura, dias depois do ‘arrastão’, não era altura para Sampaio falar de xenofobia, racismo, integração ou outras generalidades: era o momento para dizer olhos nos olhos aos imigrantes: ‘Meus amigos, isto não pode voltar a acontecer. E o Estado português será implacável se actos como este vierem a repetir-se’’.
Ruptura social
Fica comprovado o gigantesco preconceito que existe em relação aos afrodescendentes, os ‘jovens de outra cor’. Qual outra cor seria essa? E com os ‘jovens da mesma cor’ seria o Estado complacente? A emigração de africanos para Portugal ocorre devido às ‘devastações’ feitas em Cabo Verde, Angola, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. É a fuga natural dos países enormemente prejudicados, quer pela colonização, quer pelas guerras civis que ocorreram em seguida à independência.
Os meios de comunicação lusitanos deveriam incentivar a integração social e racial ao invés de contribuir para o aumento do preconceito, já demasiado forte.
Dando continuidade à cobertura tendenciosa da mídia, um grupo extremista fez um protesto no centro de Lisboa, dizendo ‘não aos imigrantes’. O que a imprensa não quer revelar é que boa parte dos habitantes da Cova da Moura, não somente os envolvidos no arrastão, são cidadãos portugueses vítimas da exclusão social. São os ‘eternos imigrantes’, estrangeiros em seu próprio país. Será mesmo que Portugal acolhe os imigrantes de ‘braços abertos’?
Alguns esquecem que sem a ajuda financeira que recebem da Comunidade Européia, desde que o tratado foi assinado há 20 anos, o país estaria ainda com maiores dificuldades, elevando o fluxo de imigrantes.
O arrastão que sacudiu a praia de Carcavelos tem peculiaridades locais. Sua origem remonta um processo de colonização mal resolvido, que leva cidadãos portugueses a serem segregados por conta de suas raízes. Associá-los a fenômenos de ruptura social de além-mar é uma forma de eximir-se da culpa e desvirtuar o foco da questão. E a mídia portuguesa contribuiu para isso.
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Engenheira, doutorando em Informática na Universidade Nova de Lisboa