Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Manuel Pinto

‘Faz hoje um mês que a generalidade dos grandes meios de comunicação social portugueses – com a televisão à cabeça – escancarou, sem pejo, o nome da bebé de Viseu vítima de maus tratos, alegadamente perpetrados pelos pais. Contra todas as regras deontológicas e contra o espírito da própria lei. Até agora, não houve nenhuma iniciativa, nenhum inquérito instaurado, nenhuma diligência – de regulação ou de auto-regulação – tendente, pelo menos, a evitar que algo parecido possa voltar a ocorrer. O Conselho Deontológico dos jornalistas aparentemente não viu, não ouviu nem leu nada de problemático. Tanto quanto se sabe, a Alta Autoridade para a Comunicação Social, em fim de vida, ficou muda e queda. Assim vamos nós.

O texto que sobre o assunto aqui escrevi há oito dias motivou uma única reacção (sei que foi também objecto de comentário concordante, na revista de Imprensa da RTPN).

Começa assim a mensagem da leitora Marília Rodrigues ‘O seu artigo de domingo passado representa um grito de alerta sobre as constantes violações dos direitos de crianças indefesas que também os jornais e sobretudo a televisão cometem’. E aproveita a ‘boleia’ do tema para levar a reflexão um pouco mais longe: ‘Já não era mau se o único problema fosse a divulgação dos nomes de miúdos vítimas de maus-tratos e de violência sexual. (?) Quantos bebés não são maltratados, sem que se saiba? E olhe que não é só os filhos de gente miserável (?). Deviam ir ver como funcionam as comissões de protecção, sem meios e sem formação e às vezes até com medo. Deviam falar com as professoras do primário ou as educadoras de infância de algumas zonas do nosso país. Não é só quando há casos destes que os jornalistas deviam escrever sobre as crianças’.

Marília Rodrigues interpela o jornalismo que se tem feito entre nós e sugere a existência de um mundo de miséria escondida, do qual os media não captariam senão os casos mais graves, sem conseguirem fornecer um retrato vivencial e um quadro geral do problema da infância maltratada.

Que a situação é grave parece não haver dúvidas. Através de relatórios oficiais que acabam de ser divulgados, ficámos a saber que, só entre 2002 e 2004, chegaram às instituições do Serviço Nacional de Saúde mais de 7.000 crianças em situação de risco, número presumivelmente bastante aquém da realidade.

Várias são as questões a ter em conta no tratamento jornalístico dos aspectos e problemas relacionados com a vida das crianças em geral e com aquelas que se encontram em situação de risco ou de trauma, em particular. As questões começam logo com o vocabulário utilizado, hegemonizado pelo conceito (jurídico) de ‘menor’. Pensámos pouco nisso, mas quando recorremos a um termo como este estamos a adoptar um modo de definir a infância mais por aquilo que lhe falta do que por aquilo que já é, ou seja, mais pela negativa (ou pelo deficit) do que pela positiva.

Este ponto liga-se com outro que tem que ver com os direitos das crianças, estabelecidos por uma convenção das Nações Unidas que faz lei nos países que a ratificaram, entre os quais Portugal. Nesse documento, aprovado em 1989, estabelecem-se três famílias de direitos de protecção (face a riscos e ameaças); de provisão (nos planos sanitário, alimentar, educacional, etc.); e de participação e expressão (relativamente a assuntos que lhes digam respeito). Os media têm, quanto a todos estes tipo de direitos, responsabilidades notórias: de divulgação de iniciativas e denúncia de situações, nuns casos; de auscultação da voz dos mais novos, noutros casos.

‘O modo como os media representam ou mesmo ignoram as crianças pode influenciar decisões tomadas em nome delas e o modo como a sociedade as vê’, refere a publicação ‘The Media and Children’s Rights’, da UNICEF. No plano ético-deontológico, a Federação Internacional de Jornalistas aprovou, em 1998, numa reunião que decorreu na cidade brasileira de Recife, um leque de orientações que incluem pontos como os seguintes evitar a todo o custo divulgar o nome e a imagem de crianças vítimas (ou testemunhas) de abuso sexual e de maus-tratos; verificar todas as informações fornecidas por crianças; evitar imagens de crianças com conotações sexuais. Parece igualmente razoável um princípio que vários códigos de conduta enunciam: os filhos não devem ser expostos e identificados nas notícias sobre eventuais conflitos dos respectivos pais ou encarregados de educação.

Os direitos das crianças nos media são assunto ainda pouco debatido e onde os atropelos e insensibilidades se sucedem. Motivo acrescido para uma maior vigilância e formação.

Post-scriptum Foi-me feita a pergunta sobre se a palavra ‘bebé não continua a ser um substantivo masculino’, como aprendemos na escola. De facto, alguns dicionários continuam a considerar incorrecto escrever ‘uma bebé’, como o JN e vários outros media têm feito e como vinha no título desta coluna, há oito dias. Mas o uso tem muita força e o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, já integra as duas formas da palavra.’



***

‘Retratos da infância nas notícias’, copyright Jornal de Notícias, Porto (Portugal), 15/1/06

‘Em Portugal, tem sido a Prof. Cristina Ponte, da Universidade Nova de Lisboa, que de uma forma mais sistemática e aprofundada tem estudado o modo como a Imprensa cobre os assuntos relacionados com os mais novos. No seu livro ‘Crianças em Notícia – A construção da infância pelo discurso jornalístico (1970-2000)’, editado pela Imprensa de Ciências Sociais em 2005, aquela investigadora mostra como, em trinta anos, o modo de as Redacções e os jornalistas encararem o universo e as problemáticas infantis variou tanto.

Focando o caso do ‘Diário de Notícias’, Cristina Ponte mostra que, poucos anos antes do 25 de Abril, a criança tendia a ser motivo de notícia quando era vítima de acidentes, apresentados como resultado do ‘destino’ ou da infelicidade. No período revolucionário, emerge um discurso jornalístico militante e de denúncia, paredes-meias com o discurso ‘ideologicamente mobilizador’da ‘construção do homem novo’. A partir dos anos 80, vai paulatinamente surgindo um jornalismo mais ‘falado’ e mais cuidado do ponto de vista do grafismo, mas caracterizado por algum conservadorismo relativamente às temáticas da infância temas ‘perenes’, como o abandono e os maus tratos continuam a ser apresentados mais como sucessão de casos do que afloramentos de lógicas sociais; as fontes oficiais e especializadas predominam e, salienta Cristina Ponte, ‘a voz do jornalista funde-se com a voz popular na construção da ‘criança romântica’, isto é: ‘uma descrição da infância como tempo de pureza, inocência e despreocupação, acompanhada pela nostalgia de uma perdida idade de ouro’.

A pesquisa feita identifica também uma associação das questões da infância às mulheres, escasseando, ao mesmo tempo, abordagens ‘a partir da economia, da política, do direito, das ciências sociais’.

Nos anos mais recentes, e salvo excepções, os mais pequenos aparecem nas notícias muito através da educação e da escola, porventura também pelo estatuto (de alunos, de filhos, de telespectadores, de consumidores) e pouco como pessoas, grupos de idade específicos, com as suas preocupações e os seus sonhos e, sobretudo, com a sua palavra própria.

Ou seja, ao contrário do que pretende um discurso de senso comum acerca do que é o jornalismo, a análise em profundidade e com uma perspectiva temporal alargada reitera a ideia de que, também (ou sobretudo?) no que à infância diz respeito, há enquadramentos, filtros e moldes (culturais, ideológicos?) que presidem à selecção, tratamento e enfatização das notícias. Quem usa essas lentes, a maior parte das vezes ou não sabe ou esquece-se de que as usa. Mas a verdade é que usa. O jornalismo tem certamente algo de espelho, mas é sobretudo leitura e interpretação daquilo que merece aceder à visibilidade da publicitação e decisão sobre o tempo e, sobretudo, o modo de publicitar. O que não lhe retira nem razões para nele confiar nem relevância social.’