Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Maio de 68 começou em março

Desde 1988, a cada dez anos tenho motivo para me sentir um dinossauro: é que de década em década o ano de 1968 volta a ser tema de muitas matérias, livros, estudos e debates. Agora, em 2008, o tema voltou quente, com uma novidade: a direita tentando ‘desmistificar’ 68, desqualificar tudo o que aconteceu.

Mas não dá para reinventar a História. E se há essa novidade da direita, há também uma intensa vontade de muitos jovens de saber mais sobre o que aconteceu naquele ano e por que aconteceu. Não com a intenção de repetir nada, pois como dizia um barbudo do século 19, a História não se repete, a não ser como farsa ou tragédia.

No mês de maio, participei de um debate sobre 1968 no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos. Sei que têm acontecido muitos eventos parecidos e semana passada participei novamente de uma palestra, desta vez com o jornalista Ricardo Kotscho, na Livraria da Vila, em São Paulo, que promoveu uma semana de debates sobre vários aspectos relacionados ao ano de 1968. Na quarta-feira (28/5), o tema foi imprensa.

Para começar, uma coisa que sempre procuro esclarecer é que – ao contrário do que muita gente pensa – o ‘nosso’ 68 brasileiro não aconteceu a partir de maio, a reboque do ‘maio de 68’ francês. No início do ano, nas faculdades, já estávamos em luta pela matrícula dos excedentes da USP e outras universidades públicas (o critério de aprovação não era de classificação; simplesmente o vestibulando tinha que tirar nota acima de 5 em todas as matérias, e em alguns cursos passavam mais vestibulandos do que o número de vagas), denunciávamos o acordo MEC-Usaid (Usaid é a sigla em inglês para United States Agency for International Development, uma instituição norte-americana de ‘ajuda’ a outros países; e o acordo tinha como meta adaptar o currículo das universidades aos interesses das indústrias, especialmente das multinacionais), o imperialismo e a ditadura.

Em 28 março, a repressão matou um estudante secundarista, Edson Luís Souto, no restaurante estudantil ‘Calabouço’, no Rio, e começou uma era violenta. Quando os estudantes franceses começaram sua briga por mais liberdades (o início de tudo foi um movimento para retirarem as barreiras entre os dormitórios masculino e feminino da Universidade de Nanterre), o pau já comia solto aqui. Claro que não ficamos só na nossa: muitas lutas se tornaram comuns, nós nos identificamos com muitas coisas de fora, inclusive dos jovens estadunidenses que se manifestavam contra a guerra do Vietnã. Mas nossa luta principal era outra, nossos principais adversários eram a ditadura e o imperialismo.

Abaixo, alguns temas discutidos na Livraria da Vila, começando por informar onde estávamos, o Kotscho e eu, em 1968. Começo por mim porque, por sugestão do Kotscho, falei primeiro. Os temas não estão na ordem em que foram debatidos.

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Onde estávamos

Mouzar Benedito – Além de trabalhar, eu estudava Geografia na USP. O curso fazia parte da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, normalmente chamada apenas de Faculdade de Filosofia, mas tinha doze departamentos, incluindo Geologia, Física, Biologia, Pedagogia etc. A sede da faculdade era na Rua Maria Antônia, região central de São Paulo, mas muitos cursos já estavam na Cidade Universitária. A Faculdade de Filosofia era considerada o maior reduto de resistência à ditadura em São Paulo. E morava no Crusp – Conjunto Residencial da USP, que era considerado o segundo maior reduto de resistência à ditadura.

Ricardo Kotscho – Tinha 20 anos e queria mudar o mundo, mas sem pegar em armas. Só escrevendo. Trabalhava como repórter do Estadão e era aluno da primeira turma da Escola de Comunicações e Artes da USP. Não me formei até hoje. Comecei a trabalhar como repórter em 1964, o ano do golpe militar. Em outubro completo 44 anos de profissão. Aposentado, trabalho na revista Brasileiros, no portal iG e na TV Globo.

Lembro-me vagamente que, desde o começo de 1968, de vez em quando era preso ou simplesmente desaparecia algum colega de jornal ou da faculdade. Eu não era muito ligado em política, não entendia direito o que estava acontecendo. Não participava do movimento estudantil, nem do sindicato, nem de partidos políticos legais ou clandestinos. Só queria ser repórter. Nunca fui preso nem torturado.

A ditadura pra valer só começou no final de 1968, no inesquecível dia 13 de dezembro de 68, quando os militares deram o golpe dentro do golpe e o Brasil entrou na longa noite do Ato Institucional nº 5, o famigerado AI-5. Foi quando começou a censura do Estadão. Os militares invadiram literalmente na redação, e foi aí que caiu a ficha pra mim.



A censura no Estadão

R.K. – Na madrugada do 13 de dezembro em que Costa e Silva editou o AI-5, na página 3, o jornal trazia o premonitório título ‘Instituições em frangalhos’. Informados por alguns dos vários colaboradores do regime infiltrados na redação – tinha isso também, o popular dedo-duro – o delegado Sílvio Correia de Andrade, da Polícia Federal, invadiu a oficina, que dava para a Rua Martins Fontes, e gritou a ordem: ‘Parem as máquinas!’ Em seguida determinou aos policiais que o acompanhavam a apreensão de todos os jornais já prontos para a distribuição. Pela primeira vez desde o golpe, o Estadão deixou de circular.

Logo cedo, Júlio Neto e Rui Mesquita foram se queixar ao governador Abreu Sodré, um amigo da família nomeado para o cargo pelos militares. Comunicaram que o jornal agora seria de oposição aberta ao regime.

Até esse dia, o Estadão, que ajudou a dar o golpe, como aliás toda a imprensa, inclusive o Correio da Manhã [que depois se tornou oposição e sofreu muitas pressões até fechar], que fez vários editoriais pedindo o golpe contra João Goulart. Depois é que todos, quando sentiram na pele, tornaram-se críticos.

No começo da noite, dois policiais à paisana da Divisão de Diversões Públicas da Secretaria de Segurança do Estado de São Paulo chegaram à redação para examinar o noticiário político. Era o início oficial da censura prévia no Estadão.

Ao relembrar esse episódio muitos anos depois, o Oliveiros me contou que o nosso diretor, Rui Mesquita, irmão do Júlio de Mesquita Neto, só se zangou quando um contínuo serviu café ao censor.

Voltei para a minha mesa e voltei a escrever como se nada estivesse acontecendo. Sem alternativa, eu e minha turma terminaríamos outra noite na Juçara [uma casa noturna]. Professor da USP, estudioso dos assuntos militares, Oliveiros Ferreira previu um longo e feroz período de ditadura. Tinha razão. Eu discordava dele, mas nisso ele tinha razão.



Tomando consciência

R.K. – O bom de jornal é que não dá nem tempo de sentir tristeza quando algo não dá certo. Logo o pau começou a quebrar entre a polícia e os estudantes cada vez mais mobilizados contra a ditadura. Na Rua Maria Antônia, entre a Consolação e a avenida Higienópolis, ficavam frente a frente a Faculdade de Filosofia da USP, reduto da esquerda liderada por um certo Zé Dirceu. Nosso famoso Zé Dirceu. Estabeleceu-se ali um permanente pé-de-guerra, com a polícia no meio. No começo de outubro de 68, a batalha entre estudantes e policiais nas ruas durou doze horas e espalhou-se pela cidade. Jornalistas também eram presos e espancados. Quando eu tentava defender uma estudante, PMs atiçaram um cão pastor contra mim e levei uma mordida na perna.

Assim que cheguei ao jornal, formou-se uma rodinha à minha volta. Até Júlio de Mesquita Neto, o dono do jornal, quis saber o que estava acontecendo e comentou: ‘Por que esse menino foi se meter com a polícia?’ Acho que foi nessa cobertura que caiu a ficha. Eu era até então o que se podia chamar de ‘jornalista alienado’, muito mais interessado em ver os jogos do São Paulo ou encontrar as meninas da Juçara do que em participar de assembléias na faculdade ou de reuniões no sindicato.

Logo fiquei amigo do Zé Dirceu. As minhas matérias sobre o movimento estudantil começaram a ser questionadas pela direção do jornal, cuja linha política se identificava mais com a do pessoal do Mackenzie, que tinha o CCC – Comando de Caça aos Comunistas. Como as matérias não eram assinadas, vira e mexe a redação as manipulava para evitar problemas com ‘Deus’ – assim chamávamos o patriarca da família, Júlio de Mesquita Filho, entidade superior pouco vista mas respeitada e temida por todos.

Isso me criava problemas com os líderes estudantis que eu encontrava no dia seguinte, já com o Estadão na mão, reclamando. Quem mais brigava comigo era o Zé Dirceu, que parecia não entender a hierarquia dos jornais – repórteres e editores tinham que cumprir as ordens da direção ou pedir as contas.



A imprensa alternativa

M.B. – A imprensa alternativa tem a ver com 68, mas mais como conseqüência, não como acontecimento daquele ano. A ‘explosão’ da imprensa alternativa começou com o Pasquim, criado em 1969. Houve jornais alternativos anteriores, mas sem tanto impacto.

Existem várias definições de imprensa alternativa. Uma delas é que ela não depende de dinheiro de grandes anunciantes nem do governo. Mas a que eu acho mais correta é que ela procurar contar o que as outras não contam, ou contam de acordo com a ideologia dominante.

O Pasquim surgiu com a pretensão de ser um jornal de Ipanema e depois da Zona Sul do Rio. Mas pegou tanto, pelo modo de tratar a ditadura com humor – era radicalmente contra a ditadura, mas tinha humor –, que acabou influenciando toda imprensa brasileira. A influência foi notada até no Estadão, o jornal mais conservador que havia. Houve uma mudança de linguagem. Nesse período, eu mesmo ficava fascinado pelo Pasquim. Tinha assinatura do jornal, mas ele demorava dois dias para chegar pelo correio, então comprava outro na banca antes disso.

Havia um clima muito apropriado para o surgimento e crescimento dessa imprensa: leitores insatisfeitos com a grande imprensa achavam que havia uma manipulação da notícia, e jornalistas também insatisfeitos com seu próprio trabalho nos grandes jornais. Muitos queriam fazer coisas diferentes.

Daí surgiu uma variedade enorme de jornais. Em 1972, veio o Opinião, do empresário Fernando Gasparian, que discutia todas as questões nacionais. Em 1974, o Movimento, que já nasceu sob censura. Em 1981, o Polítika, nacionalista. Em 1985, o Versus, entre outros, lançado em seguida do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, num clima muito tenso. E a imprensa alternativa se espalhou pelo Brasil todo, com o Jornal da Amazônia, de Manaus; Varadouro, do Acre; Resistência, do Pará; Chapadão, do Piauí; Boca do Inferno, da Bahia; Posição, do Espírito Santo; Em Tempo, de São Paulo; De Fato, de Belo Horizonte; José, de Goiânia; Coojornal, de Porto Alegre, e muitos outros.

Houve também a imprensa feminista: Brasil Mulher, criado por Terezinha Zerbini, que inicialmente se dedicava à luta pela anistia; o Nós, Mulheres e o Mulherio. E mais: o jornal Lampião da Esquina, de homossexuais; o Chana-com-Chana (não me lembro se era assim que se escrevia), de lésbicas.

Houve também jornais destinados ao movimento operário, como o Jornal dos Bairros, de Belo Horizonte, localizado na divisa entre o bairro do Barreiro e a cidade de Contagem, onde havia grande concentração de trabalhadores das indústrias. Foi criado por um grupo de estudantes e faziam parte desse grupo pessoas que depois se tornaram políticos de porte nacional, como Nilmário Miranda, Tilden Santiago, Sandra Starling, Patrus Ananias e muitos outros.

(Um membro da platéia lembrou-se também do Inimigo do Rei, um combativo jornal anarquista.)



Rachas e fim dos alternativos

M.B. – No processo de criação dos jornais, em muitos casos, houve muitos rachas: o Movimento foi um racha do Opinião, e do Movimento saiu o Em Tempo. Antes de sair o número 1 do Em Tempo, houve um racha que resultou na criação do efêmero Amanhã.

Quando a ditadura já fraquejava, começou a queda da imprensa alternativa. Primeiro, porque os grandes jornais passaram a publicar matérias mais críticas, típicas até então dos jornais nanicos. Daí, o público já não sentia tanta falta dos alternativos. E muitos jornalistas dos então alternativos foram contratados pela grande imprensa. Teve também o domínio de certos jornais por grupos de esquerda, como o Versus, dominado pela Convergência Socialista. No Em Tempo, que era de uma frente de esquerda, a luta pela hegemonia foi ‘expulsando’ algumas correntes, até sobrar a Centelha, de Minas, e a Peleia, do Rio Grande do Sul, hoje abrigadas na Democracia Socialista, que é uma tendência do PT e também do PSOL.

Mas o que foi um xeque-mate mesmo foi o incêndio de bancas que vendiam jornais alternativos pelo ‘Grupo Chama’, de extrema-direita, formado basicamente por estudantes de direito da PUC, mas com apoio policial. Donos de bancas começaram a ter medo de vender jornais alternativos em São Paulo, e aqui era onde havia mais leitores deles. Foram financeiramente estrangulados, já que sobreviviam das vendas e não tinham grandes anunciantes.



Matérias sobre presos políticos

M.B. – Eu tinha amigos presos em São Paulo e no Rio. Assim que foi permitido que eles recebessem visitas de amigos, comecei a freqüentar os presídios fazendo matérias com os presos para o jornal Em Tempo, que foi um dos mais combativos defensores desses presos. Chegou a publicar três listas de torturadores, feitas por presos. E essas matérias provocavam reação violenta de militares direitistas. Depois da primeira lista, explodiram uma sucursal do jornal e queimaram outra, em Belo Horizonte e Curitiba.

A primeira matéria que fiz sobre os presos foi depois da minha primeira visita aos presos do Rio, relatando como foi. Tive que atravessar sete grades e passar por uma revista rigorosa. Até a meia me tiraram. E abriram o maço de cigarros para ver se não tinha alguma coisa dentro dele. Depois, fazia matérias regularmente. Escrevia umas anotações dentro da cadeia, decorava tudo, pois não podia sair com anotações lá de dentro – havia revistas na saída também –, entrava num boteco em frente ao portão, pedia um papel de embrulho e uma cerveja e anotava tudo de novo. Eu tinha que assinar com pseudônimo porque se assinasse com meu nome mesmo seria proibido de entrar novamente nos presídios.



O Jornal da República

Respondendo a uma pergunta da platéia, Ricardo Kotscho fala do Jornal da República:

R.K. – Era do Mino Carta. Não durou um ano, só sete meses. A IstoÉ era a revista da moda. Não tinha nada a ver com essa revista de hoje. Nem a Veja tem nada a ver com a original. Em 1979, num dia de fechamento da IstoÉ, a gente ia jantar tarde, no Giovanni Bruno, aí o Mino pedia vinho, essas coisas, se empolgou com a conversa e resolveu fazer um jornal diário. Por que não fazermos um jornal diário, se a revista estava indo tão bem? Os outros malucos que estavam na mesa acharam fantástico. Um mês ou dois depois, o jornal estava nas bancas. Era um jornal sem patrão… e sem dinheiro. O Mino achava que os empresários nacionalistas iam ajudar, mas isso não aconteceu. O jornal era impresso nos Diários Associados, que já estavam em decadência… Não havia controle administrativo, financeiro. O jornal era bom, um sucesso editorial, mas era mal distribuído e só durou sete meses. Uma pena. Foi o melhor jornal em que trabalhei e tinha uma equipe fantástica. Além do Mino Carta, tinha o Cláudio Abramo, que saiu da Folha, foi pra lá e depois voltou, o Clóvis Rossi, o Roberto Pompeu de Toledo, Nirlando Beirão… Vou esquecer, mas era uma equipe fantástica. Era a melhor redação do país, mas o jornal foi à falência e o Mino acabou perdendo o controle também da IstoÉ, que foi assumida pelo Fernando Moreira Salles.

O Jornal da República foi um sonho de uma noite de verão. Até hoje muitos trabalhos acadêmicos são feitos sobre ele.



Apoiadores do golpe

Pergunta: Até que ponto os jornais e jornalistas que na época apoiaram o golpe se arrependeram, se é que se arrependeram mesmo? E esse jornalismo de hoje, o que foi que se perdeu?

M.B. – Do meu ponto de vista, muitos deles não se arrependeram, eles se locupletaram. Recentemente, houve uma tentativa mal encaminhada de se criar um Conselho de Jornalismo no estilo da OAB. Em princípio, não sabia se era bom ou não – podia ter suas vantagens, mas esses organismos acabam virando uma coisa corporativa. Mas entre os que mais chiaram, dizendo que isso ia cercear a prática da profissão, era uma censura, uma coisa contra a liberdade dos jornalistas, estava um pessoal que se calou na época em que o governo prendia e matava jornalistas que tentavam exercer sua profissão com dignidade. Alguns até apoiavam… Acho até o contrário: muita gente que participou da imprensa alternativa hoje está do outro lado.

R.K. – Sem querer dizer que a nossa geração era melhor do que a atual, uma característica era que a gente tinha um motivo para lutar, uma luta coletiva que era contra a ditadura. Isso fazia até que boa parte da redação se unia com a direção de alguns grandes veículos, que foi o que aconteceu no Estadão, quando o jornal começou a ser censurado e a direção passou a fazer oposição à ditadura. Tínhamos um inimigo comum que era a ditadura. Mas havia situações curiosas – jornalista que não só era dedo-duro, mas até acompanhava a tortura de presos.

Em 1977, já não tinha mais censura, mas se instaurou lá, no Estadão, a autocensura. Os donos não se preocupavam com a gente porque o censor ia lá à noite e cortava tudo. Quando os censores saíram, e até hoje é assim, o que vale é a voz do dono, em todas as empresas. É um contra-senso, mas a gente tinha mais liberdade no Estadão durante a censura do que depois, porque a gente escrevia tudo, o censor ia lá e cortava. A partir de 76 ou 77, houve um grande racha lá, saíram mais quarenta jornalistas, e assumiu a direita. Não como aconteceu na Folha da Tarde, de onde tiraram toda a esquerda e puseram a direita. Era uma luta ideológica. Hoje não tem nada disso. Eu acho que hoje não existe compromisso social, não existe mais uma palavra chamada idealismo, com o qual as pessoas faziam jornalismo para mudar o mundo, para melhorar a vida das pessoas. Hoje é cada um por si. E isso não é só no jornalismo. E eu não vejo nenhuma bandeira comum que possa unir todo mundo.

Mas não sou pessimista, não acho que aquele tempo era melhor. Hoje, o Brasil está muito melhor. Naquele tempo, o jornalista corria risco de vida. A partir da redemocratização, cada um foi para um lado cuidar da sua vida. É assim que eu vejo a imprensa brasileira hoje, uma coisa amorfa, insípida, incolor… E está ganhando dinheiro. As empresas nunca ganharam tanto dinheiro como hoje.

Mas, assim como o Mouzar, acho que isso é um ciclo, não vai ter que mudar. Apesar do faturamento, está caindo a circulação dos jornais, está caindo a audiência dos telejornais porque está tudo muito igual, tudo pasteurizado, o pensamento único. Parece que um mesmo editor e um mesmo pauteiro fazem toda a imprensa brasileira. Não há um diferencial. Então, eles vão ter que mudar para salvar o seu negócio porque hoje tudo é um negócio. Tanto para os donos, como para os jornalistas. Não há qualquer tipo de compromisso – não digo político, partidário, mas com a sociedade, com o mundo que a gente vive, com a terra da gente. Quem fala disso hoje é chamado de dinossauro, romântico, poeta… Mas acho que há espaço para isso, tanto que nós sobrevivemos.

Por uma questão de sobrevivência, vai ter que começar um novo ciclo.



Releases e aspas

M.B. – A tecnologia é uma coisa que ajuda muito, mas também pode ser usada negativamente. O que os pauteiros de hoje fazem é pegar os releases mandados por assessores de imprensa e selecionam o que lhes interessa. E pela formação deles, quase sempre se interessam pela mesma coisa. Passam para os repórteres, que têm a função de só ‘esquentar o release‘, pegar uma declaração qualquer, por telefone.

R.K. – Isso é o que se chama ‘caçar aspas’ – pegar alguma declaração para pôr entre aspas.

M.B. – Outra coisa é a quantidade de jornalistas que as faculdades despejam a cada ano. Vi um cálculo de que no estado de São Paulo existem oito mil estudantes de Jornalismo. Quer dizer, a cada ano, saem dois mil jornalistas novos procurando emprego. Onde vão arrumar? O Sindicato dos Jornalistas tem uns três mil filiados… Não há emprego para essa massa. Então, muitos topam qualquer coisa, fazem tudo o que o patrão e o chefe mandam.

R.K. – Mudou completamente o perfil do jornalista. Muitos foram para a publicidade e outras áreas. Dos que trabalham na profissão, cerca de 60% são assessores de imprensa. E dos 40% que restam, a maioria é free-lancer ou não tem vínculo empregatício.



Livros

Muitos dos temas tratados na discussão não se restringiram à imprensa, mas se estenderam a temas que não cabem aqui. Os livros indicados abaixo serviram de base para muito do que discutimos.

** Memórias – do golpe ao Planalto – uma vida de repórter, de Ricardo Kotscho, ed. Companhia das Letras.

** 1968, por aí… Memórias burlescas da ditadura, de Mouzar Benedito, ed. Publisher Brasil.

** Ousar Lutar – memórias da guerrilha que vivi, de José Roberto Rezende e Mouzar Benedito, ed. Boitempo.

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Jornalista e geógrafo