Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

“A mídia é a arma do capital”

Semana sim, semana não, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra e seus dirigentes, dentre eles João Pedro Stedile, vêem seus nomes mencionados em controvérsias jornalísticas que abrem debates extensos sobre o papel da mídia na constituição da democracia desigual que caracteriza o Brasil. Nesta entrevista ao Núcleo Piratininga de Comunicação, Stedile dedica-se a pensar exclusivamente sobre a mídia. Mostra, principalmente, que ela pode e deve ser uma aliada do povo, mas até agora, funciona como ‘arma poderosa na mão do capital’. Da TV pública à exigência do diploma para o exercício do jornalismo, passando pelo papel do MST na briga por uma Conferência Nacional de Comunicação, a entrevista a seguir dá conta de uma avaliação contundente da mídia por um dos lados da história normalmente vitimizados por ela.


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O senhor comentou sobre essa questão da mídia assumir hoje o papel de disseminar a ideologia da classe dominante. A solução a esse contexto seria a criação de uma mídia da classe trabalhadora?


João Pedro Stedile – Quando a sociedade brasileira, estava ainda sob a égide do capital industrial, os trabalhadores tinham diversas formas de organização social, tinham o sindicato, a associação de bairro, o partido e a escola. O capital industrial reproduzia a sua ideologia, a sua hegemonia, a sua forma de ver o mundo nesses espaços onde a classe trabalhadora estava organizada. O capital dirigia a escola, dirigia o sindicato e influenciava por aí o partido porque os partidos nasceram na República não só para eleger pessoas, mas para reproduzir o projeto da burguesia. Agora nós estamos em uma outra etapa do capital, em que ele usa outras formas de dominação. Basicamente é o capital financeiro, são as empresas internacionalizadas, e para esse capital financeiro e para as empresas internacionais é muito difícil dirigir ideologicamente os trabalhadores porque, inclusive, eles não estão mais organizados como antes. Aqui mesmo, no Brasil, só 51% da população economicamente ativa tem carteira assinada, isso significa que a metade dos trabalhadores está dispersa no trabalho informal, sem nenhuma forma de organização.


Nessa etapa que ficou mais conhecida como neoliberalismo, como o capital reproduz a sua forma de ver o mundo? Através da televisão, dos grandes meios de comunicação, jornal e revista mais para a classe média, pequena burguesia, setores intelectualizados, das universidades, e a televisão e o rádio para a grande massa, que agora está dispersa. Então, o balanço crítico que nós fizemos, as reflexões que temos com esses setores que acompanham mais a imprensa, é que a grande imprensa se transformou em uma arma poderosa na mão do capital. Primeiro porque ela não se preocupa com a neutralidade da informação, ela usa a informação como uma mercadoria, então, ela tem que ganhar dinheiro vendendo uma idéia.


O segundo problema é que a imprensa virou um monopólio, sete ou oito grupos no Brasil, nos Estados Unidos, no Japão, na Europa. Esse monopólio é importante para a classe dominante porque é a maneira deles controlarem; por isso é que no Brasil, quando algum jornal resolve nos atacar, todos atacam porque é um monopólio.


O terceiro fato é que a imprensa está misturada com grandes grupos econômicos, não são mais aquelas famílias, aqueles jornalistas históricos, nem sequer são os Marinho, os Marinho são frutos do período anterior. Agora a grande imprensa se mistura como grupo econômico, em todos os grupos econômicos do capital financeiro e internacional. Não é por nada que a Abril foi vendida para um banco da África do Sul, não é por nada que a Telefônica tem ações na Folha, e assim sucessivamente, ou seja, o grande capital controla por meio de acumulação.


Bem, para fazer frente a isso, é preciso primeiro que a classe trabalhadora se conscientize, saia daquela visão, daquela ilusão de que a imprensa é democrática, republicana, ouve os dois lados e é neutra e ao mesmo tempo construa novos meios de comunicação. Esses novos meios têm que representar em primeiro lugar um avanço em termos democráticos, ou seja, eles têm que levar a informação mais ampla possível para as massas. Segundo, tem um componente ideológico que é explicar o mundo e os fatos pelo olhar dos trabalhadores.


Então não seria uma imprensa neutra?


J.P.S. – Tampouco é uma imprensa neutra. Isso no ideológico, mas ela tem que ser democrática no sentido de apresentar as várias formas que a classe trabalhadora tem de interpretar o mundo, também não há uma só visão da classe trabalhadora de ver o mundo. Há várias visões, então nisso ela tem que ser plural, não pode ser única, mas ela tem que ser um olhar das maiorias da classe trabalhadora.


E combater o uso da imprensa como mercadoria, como forma de ganhar dinheiro, de explorar, que é isso que está, inclusive, na base das distorções dos próprios profissionais de imprensa, que reproduziu a mesma desigualdade social nos meios de comunicação. Os editores que são os zeladores da linha editorial ganham fortunas. Uma editora aqui no Brasil ganha mais do que nos Estados Unidos e na Europa. E por outro lado, como vocês dizem, os foquinhas, os repórteres recém formados, ganham salários abaixo do que a classe trabalhadora humilde ganha – mil e duzentos reais, três salários mínimos – isso não é nada.


O senhor mencionou a televisão, mas talvez esse meio, juntamente com o rádio, apresente dificuldades maiores para que seja de fato da classe trabalhadora, por causa da legislação restritiva e outros fatores. Quais seriam os caminhos, então, para construirmos efetivamente essa mídia da classe trabalhadora?


J.P.S. – Eu acho que a maior restrição da televisão é o poder econômico mesmo, porque no caso brasileiro, inclusive o território é grande, para você chegar a amplas massas tem que ter canais de difusão potentíssimos, que custam milhões de dólares, e isso a classe trabalhadora não tem. Mas para a nossa sorte aquela forma da classe dominante de usar os meios de comunicação tem contradições também, não é assim, passe de mágica.


Tudo no mundo tem contradições e uma das contradições da televisão é que ela é efêmera, ela te dá uma informação e tu esqueces porque tu viras um espectador. A segunda contradição é que a juventude já cansou, a juventude sempre quer mudar, então entre quatorze e vinte e oito anos os índices da audiência são baixíssimos, são ridículos; a televisão hoje consegue influenciar ideologicamente as camadas de maioridade, acima de 50 anos, e abaixo de dez anos. Então, a juventude procura outras alternativas, e isso é positivo para nós.


Agora, a segunda parte da sua pergunta, essas mudanças em construir outros e novos tipos de comunicação, essas mudanças para deixar a nossa sociedade mais democrática, não aconteceram separadas das mudanças gerais da sociedade. Só vão acontecer quando o Brasil fizer um grande movimento de massas que derrote o neoliberalismo, derrote o capital financeiro e o capital internacional, ou seja, derrote essa forma de dominação do capital. Com isso então abrirá espaços para mudanças estruturais na sociedade brasileira nos vários campos, abrirá espaços para termos uma educação universalizada para todo o jovem entrar na universidade, abrirá espaço para todo mundo ter direito à sua casa, uma moradia digna, abrirá espaço para a reforma agrária e abrirá espaço, então, para que a sociedade organize de uma maneira diferente a forma de se comunicar.


A TV Brasil, chamada de TV Pública, atende essa demanda dos movimentos sociais ou está aquém disso?


J.P.S. – A TV pública é uma boa iniciativa no sentido do Estado chamar para si, sem ser governamental. Mas se o Estado, o público no Brasil, ainda é dominado pelo capital financeiro e internacional, o espaço de manobra da TV Pública, embora na sua origem a idéia é boa, vai ser limitadíssimo. Porque o Estado é que vai controlá-la, não são os movimentos sociais, e o Estado está sob a hegemonia ideológica e do poder econômico do capital financeiro e internacional. Então eu acho que é uma idéia que só vai alcançar plenitude quando houver essas outras mudanças que eu falei, quando houver mudanças do modelo econômico do Brasil.


Paralelamente eu poderia comparar com a Petrobrás. A Petrobrás é uma empresa estatal, embora já metade do seu capital seja estrangeiro; na idéia é importante, o petróleo que é uma energia importante tem que estar sob o controle do estado para beneficiar a todos, mas o jeito que o capital financeiro fez, manteve 51% da administração do Estado e se apropriou das ações para ter o lucro da Petrobrás. Então a Petrobrás do jeito que está hoje apenas reproduziu o modelo do capital financeiro, ela não serve. Ah, então você é contra a Petrobrás? Não, mas eu acho que a idéia boa da Petrobrás só vai se realizar em plenitude quando tivermos um outro modelo econômico, que reorganize a economia para atender as necessidades da população, aí sim vai ser fundamental termos uma empresa pública como a Petrobrás a serviço do povo.


Qual deve ser o papel dos comunicadores com vistas a esse novo modelo? Só para complementar a pergunta, o senhor é a favor da obrigatoriedade do diploma para jornalista?


J.P.S. – Não faz sentido, todo o povo se comunica. É claro que existem técnicas de você fazer o melhor, mas as pessoas não necessariamente podem dominar essas técnicas em um banco escolar. Eu acho que nós devemos estimular que todos os militantes sociais sejam comunicadores, que eles escrevam notícias, que eles falem, que eles saibam editar um programa de rádio. Sem desmerecer o papel que a universidade como um centro acadêmico tem de aprimorar as técnicas, de preparar profissionais mais capacitados, mas esse papel não pode ser exclusivo, sobretudo porque a comunicação é, acima de tudo, um direito, uma forma de expressão cultural do povo, então não pode ser restrita a alguns profissionais só porque tem o diploma.


Mas então qual seria o diferencial dessa pessoa que tem um diploma, uma formação acadêmica, dos demais comunicadores populares, diríamos?


J.P.S. – Eu acho que ele tem muitas funções em um outro modelo, ele pode ajudar a formar melhor os comunicadores populares que não têm formação acadêmica, ele pode aprimorar a técnica nas redações, nas rádios, ele pode contribuir para que as coisas sejam feitas de uma maneira mais profissional, mas não pode ser exclusiva dele essa missão. Vou comparar com outro exemplo, para você pregar uma doutrina religiosa não precisa ser padre, não precisa ter o título de teólogo, qualquer pessoa se estudar um pouco, ler, pode ser um pregador de uma idéia religiosa, e para isso não precisa ser teólogo. E às vezes os melhores pregadores são os pregadores populares que dominam a cultura. Isso não quer dizer que não é necessário teólogos, eles vão se aprimorar, vão fazer a exegese, no caso de vocês, como profissionais da comunicação, vão fazer a exegese da luta de classe, vão interpretar melhor, mas não pode ser exclusivo de quem passa na universidade.


Essa seria, então, nossa função? Se o senhor estivesse em nossas universidades o que o senhor falaria para os estudantes de comunicação sobre a forma pela qual eles podem contribuir, por exemplo, para a luta do MST?


J.P.S. – Não pretendo ser pedante, nem existe manual com regra, faça isso, faça aquilo. Mas eu acho que os estudantes de comunicação, assim como qualquer outro estudante universitário de outras carreiras, a sua missão principal na conjuntura atual, e é disso que nós estamos falando, é serem pessoas conscientes, terem conhecimento da realidade em que vivem.


Esse é o primeiro passo, deixar de ser alienado, de ser manipulado por outros, e isso as pessoas só adquirem com estudo, participando da luta social, vivenciando os problemas da nossa sociedade. É assim que as pessoas viram conscientes, ou seja, como vem do latim, conhecer a realidade, isso é que é ser consciente. Então esse é o primeiro passo, até porque os estudantes universitários são privilegiados na sociedade atual, só oito, dez por cento de jovens chegam às universidades, então, os que chegam deveriam ter a consciência de conhecer melhor a realidade e ajudar a organizar para que outras pessoas também se conscientizem para mudá-la.


Evidentemente que eu não estou colocando a responsabilidade de achar que os estudantes universitários vão mudar a realidade brasileira, isso é uma tarefa de milhões e do povo, mas os estudantes universitários, por serem um setor social privilegiado que tem acesso ao conhecimento, podem colocar os seus conhecimentos para ajudar a conscientizar outras pessoas e organizá-las. Isso seria então a segunda missão histórica, embora nessa conjuntura, ajudar a conscientizar outras pessoas. E você ajuda de muitas formas, fazendo um boletim, fazendo um programa de rádio, fazendo uma reunião no centro acadêmico, fazendo uma reunião onde tu mora; as formas dependem do meio onde tu vive, e são infinitas, não há regras e nem grau de prioridade. Terceiro, como missão, eu acho que os estudantes de comunicação deveriam então contribuir também para levar essa leitura de que todos os movimentos e setores da classe precisam se comunicar, terem seus meios de comunicação. E assim, com a sua profissão e a sua consciência, ajudar que a classe organize esses meios de comunicação para que ela se comunique com a base, com seus vizinhos e com a sociedade em geral. Tudo isso só tem um sentido se as pessoas obviamente se colocarem também, como missão histórica, de que querem lutar contra as injustiças e mudar a sociedade. Se você está satisfeito com a sociedade brasileira, com o jeito que ela funciona, então, as três missões anteriores não tem sentido nenhum. Então, faz parte também da missão do jovem consciente, se dispor a lutar para mudar a sociedade.


Tem uma música do Rappa que diz que hoje eu desafio o mundo sem sair da minha casa. As tecnologias permitiram uma pulverização da produção da mídia o que acabou sendo uma individualização, a pessoa que tem um computador pode produzir um vídeo, um blog, uma mídia qualquer, só que a recepção é muito menor, poucas pessoas ouvem as web radios, poucas pessoas acessam os blogs.


O que você acha desse fenômeno de facilidade de produção, mas também dificuldade de recepção dessa produção midiática?


J.P.S. – É essa pluralidade que eu estava falando antes, eu acho que nós não podemos nos ater, ah o prioritário é isso ou aquilo, mas procurar potencializar todas as formas de comunicação. É claro que algumas são mais massivas, outras são mais individualistas, mas eu acho que na soma todas são importantes.


Mas também não é uma luta de Davi contra Golias, de um lado a grande imprensa, de outro, as pequenas imprensas alternativas, com dificuldades de financiamento e sem conseguirem ter uma audiência tão grande quanto a grande mídia?


J.P.S. – Não se preocupe com isso, com você bem usou o exemplo bíblico, no final da história o Davi vai ganhar. Vocês são jovens e não viveram o período da ditadura militar, o período da ditadura militar foi ainda mais hegemônico do capital e dos meios de comunicação, tanto é que essa estrutura atual, se formou lá. Aí as pessoas que queriam mudar a sociedade, que queriam lutar contra a ditadura se sentiam ainda mais fracas, frágeis diante do tamanho do Golias. Mas se você considerar que o que muda a sociedade é a consciência das pessoas, e que a consciência das pessoas não se compra, nem se vende, em algum momento as massas vão despertando, vão tendo conhecimentos que levam a elas se moverem contra as injustiças. E aí é que tu vê que tudo que você fizer para levar algum conhecimento para as massas é importante.


O que eu acho é que nós devemos ser criteriosos nessa pluralidade dos meios de comunicação é com o foco para levar informação, levar consciência. Nesse sentido devemos priorizar os trabalhadores, os pobres. Se você ficar fazendo comunicação de internet para informar outro pequeno burguês ou camada da classe média que já está acomodada, aí a sua comunicação não serve para nada porque ela vai ser uma comunicação pequeno burguesa, no fundo vai ser alienante. Aí seria unicamente pelo exercício de exercitar, para ser redundante, um meio de comunicação novedoso como a internet, como um blog. Então, eu acho que aí o diferencial não está no instrumento, mas para quem ele se dirige, tu pode fazer um bom programa de rádio para as massas populares, e pode fazer um programa de rádio muito bem feito mas uma porcaria, porque vai ser só para a classe media que está interessada na última moda de Paris.


Você pode fazer um bom programa jornalístico, explicando as tendências da moda, quais são os principais estilistas, qual foi o último lançamento em Paris, e ser um programa de rádio agradável, todo mundo ficar ouvindo, mas serve para que? Quem é que está ouvindo? Mais do que o instrumento é para quem se dirige. Então, se é para eu dar algum conselho eu daria esse: se preocupem em fazer comunicação que ajude a classe trabalhadora, que ajude os pobres, para que eles possam entender melhor o mundo, porque somente eles poderão transformá-lo. Não há outra força que possa transformar a sociedade, mudar a sociedade, deixar a sociedade mais progressista, mais democrática, mais justa, se não a força das massas organizadas.


O senhor pode comentar a atitude recente da companhia Vale do Rio Doce em entrar com uma ação na justiça contra o senhor…


J.P.S. – Primeiro para os leitores ou ouvintes de vocês entenderem a natureza da nossa luta contra a Vale é preciso explicar que há dois tipos de luta que estão sendo travadas agora. Uma de caráter mais macro, mais político, que é a luta de todo o povo brasileiro para reestatizar a Vale, da qual o MST é um mero figurante. O plebiscito que consultou o povo do qual participaram cinco, seis milhões de pessoas, foi organizado por 280 movimentos, alguns locais, outros nacionais, participaram como mesárias de urnas, 150 mil pessoas, portanto é um movimento popular, cívico, e essa luta pela reestatização tem vários componentes. Tem um componente jurídico, que nós já ganhamos uma sentença no Tribunal Regional Federal de Brasília anulando o leilão, tem componentes políticos, tem componentes sindicais porque a previdência do Banco do Brasil é dona de 15% das ações da Vale, a Caixa Econômica eu acho que também tem, então, até parcelas do movimento sindical estão envolvidas nesse processo, e essa luta vai ser prolongada. Não é uma luta do MST, é uma luta do povo brasileiro, quando vai ter um desfecho?


De novo, eu acho que vai ter um desfecho feliz para o povo com a reestatização da Vale, mas vai depender desse reacenso do movimento de massas que leve a outras mudanças na sociedade brasileira. Para daí o povo se dar conta que os minérios e o subsolo não podem estar a cargo de uma empresa privada, tem que ser a velha Vale estatal, para que o lucro da Vale seja distribuído para todos os brasileiros e não só para os seus acionistas. E há um outro contencioso com a Vale, que são os problemas localizados que a Vale, por suas operações econômicas cada vez mais buscando unicamente o lucro, tem afetado comunidades que tem relação com o MST. Vou citar três exemplos que são emblemáticos.


Nós temos um assentamento em Açailândia, com 250 famílias, em uma fazenda de 10 mil hectares que nós ocupamos, foi desapropriada e as famílias estão lá há dez anos. A Vale comprou uma fazenda vizinha, instalou uma carvoaria com 70 fornos industriais e aquela fuligem do carvão alterou o clima completamente, os companheiros não conseguem produzir mais na agricultura, nem arroz dá, e agora começou a dar doenças, então, está aí um conflito. Ou a Vale põe filtro, ou sai de lá, ou desapropria uma outra fazenda, mas do jeito que está as pessoas vão morrer. E essas pessoas têm direito, até porque chegaram antes no assentamento do Incra, a lutar contra a Vale, então essa carvoaria foi ocupada no dia 8 de março. Outro exemplo, também relacionado com o 8 de março, a Vale está construindo com a Camargo Correia, uma hidrelétrica no Rio Tocantins, na região do estreito no Maranhão e Tocantins. Isso vai atingir 13 mil famílias, entre elas, três assentamentos nossos, três reservas indígenas, ribeirinhos, fazendeiros, quilombolas, tudo o que puder imaginar. A Vale não apresentou nenhum plano de reassentamento, as pessoas até se dão conta, ‘bom nós não vamos conseguir parar a barragem, né, mas e onde nós vamos morar? Qual é a terra? Para onde vão me levar? Quem vai me indenizar?’ Ninguém falou nada para essas pessoas, então, elas ocuparam o canteiro de obras, e exigiram um processo de negociação. A maioria delas nem é do Movimento. Então, se não resolver o problema do reassentamento, o conflito vai ser permanente, porque é a vida delas, é um problema de direitos humanos. Bem, depois a Vale tem outros contenciosos com outras comunidades, seja de garimpeiros, seja dos próprios trabalhadores que estão mais próximos do trem. Essas comunidades que tem alguma demanda contra a Vale pararam o trem duas vezes. Eles param o trem como se fosse fazer uma greve, para forçar a Vale a negociar, e muitos desses movimentos que aconteceram lá no município onde está a Serra dos Carajás, a própria prefeitura local apoiou.


Por quê? Porque a Vale está devendo para a prefeitura de Paraopebas 500 milhões de reais em impostos atrasados. Isso não sai em lugar nenhum, está lá na dívida ativa da prefeitura, isso nos últimos dez anos, depois da privatização. Então, nós temos três assentamentos nesse município, o prefeito puxa lá o balanço da prefeitura e diz ‘oh, não temos dinheiro, estamos em déficit, porque que nós estamos em déficit? Porque a Vale não pagou imposto’. Então a turma faz a associação: ‘vamos pressionar a Vale para pagar a prefeitura aí teremos escola’. Claro, não precisa ser muito inteligente para isso. Estou eu um dia dando a aula magna no inicio do ano letivo na universidade e chega a oficial de justiça com uma intimação da juíza. A Vale entrou com um processo como se eu fosse o responsável por aquelas mobilizações, eu e o MST. A sacanagem é que esses processos em geral são demorados, mas em dois dias a Vale entrou, eles tem o maior escritório de advocacia do Rio, eu nem moro aqui, mas eles monitoraram tudo, sabiam que eu estaria na universidade, vieram, inclusive, com uma produtora de vídeo independente para filmar tudo, e me coagiram a assinar, embora não seja meu domicílio aqui, e ao assinar, pelos prazos legais eu tive só oito dias para contestar. O mais absurdo é a natureza da ação. Eles alegam o seguinte: essas populações param o trem, a carvoaria e causam prejuízos econômicos, portanto, eu tenho que ressarcí-los. E a multa por esses prejuízos econômicos, eles pediram inicialmente para a juíza, quinhentos mil reais por ação, a juíza no despacho da sentença já botou menos, cinco mil reais. Mas não é o problema do valor, o problema da natureza, ou seja, eu moro em São Paulo, toda a opinião pública sabe, qualquer sociólogo num primeiro ano de faculdade sabe que o movimento social decide as coisas por assembléia, eles que decidem o que fazer, quando fazer, como fazer, não é de minha responsabilidade.


Agora o mais grave é, você até pode ilustrar a sua matéria, compre a revista Exame dessa semana [5 a 11 de maio], a revista tem uma matéria que era para sair na Veja. A Veja tentou fazer aquelas páginas amarelas comigo, eu mandei eles tomarem banho. O editor da Veja, um tal de Alexandre me ligou, querendo me entrevistar para as páginas amarelas, aí nós explicamos para ele que o movimento não tem a prática de dar entrevistas para meios de comunicação mentirosos e não idôneos como é a Veja. A matéria, que é uma paulada no MST, que eu acho que ia sair na Veja, eles deslocaram para a Exame. Porque é a mesma linha, né, bem direitista. A Vale fala na matéria que organizou um sistema de vigilância 24 horas sobre o MST e os movimentos, que inclui escuta telefônica, espionagem, acompanhamento das lideranças, filmagem, eles atribuíram a si agora o poder de polícia, o poder de estado, o poder de justiça, quem são eles para fazer isso. Eu acho que cabe um pedido de explicação judicial.


A ação continua correndo?


J.P.S. – Sim, nossos advogados contestaram. A primeira contestação que nós fizemos foi a seguinte: meu domicílio é em São Paulo então o processo não pode ser aqui, ou é lá em Açailandia ou em São Paulo. Mas o Tribunal de Justiça do Rio, tão ponderado que é, diz que não, que pode ser aqui. Sabe-se lá porque né? Só porque passei aqui, poderia ter passado em Nova York. Então já por aí você vê as influencias. No escritório de advocacia da Vale tem o ex-ministro Sepúlveda [Pertence], tem aquela mulher que era do BNDES que fez a privatização da Vale, a [Elena] Landau, então é um escritório poderoso. Tem filhos de ministros do supremo e, evidentemente, as influencias que eles tem são enormes. Segundo passo, eles contestaram então a natureza da ação e isso está correndo. E os advogados me informaram que como na sexta-feira houve mais uma ação de garimpeiros na Vale, a Vale entrou com uma espécie de agravo no processo dizendo ‘estão vendo como ele não obedece’ e pedindo para aumentar para um milhão.


O MST está preocupado com isso?


J.P.S. – Nem um pouco, eu falei no dia que era uma idiotice, e falo agora de novo. Digo que é idiotice não para ficar ofendendo o poder judiciário, idiotice no sentido de falta de idéia da Vale, isso que é idiota, o cara que não tem idéia. Porque é obvio, qualquer pessoa que pensa um pouquinho, que tem idéia, deve se dar conta de que se há uma população que vai ser despejada por uma hidrelétrica da Vale, enquanto não for resolvido o problema dessa população, pode prender o João Pedro, pode botar multa, que a população vai continuar protestando. Se há um assentamento sem terra ao lado de uma carvoaria e que as pessoas e as crianças amanhecem todo o dia tossindo, cuspindo cimento preto, é obvio que aquela população vai continuar protestando contra a Vale, não sou eu o responsável. Então, só tem uma maneira de resolver problemas sociais, se tu resolver, se não o problema vai continuar lá. Por isso é uma idiotice, no fundo o verdadeiro objetivo da ação judicial é amedrontar as lideranças, e dar uma resposta para os acionistas da Vale, ‘vejam como estamos tomando medidas energéticas’. Porque como devem ter vendido a imagem do Brasil para os acionistas estrangeiros que aqui é o paraíso, que voltou a ser colônia, ninguém reclama, aqui é Barbada, tu investe e só leva dinheiro de volta. Esqueceram de combinar com o povo!


O MST está participando do movimento pró Conferencia Nacional de Comunicação. Quais as expectativas de vocês?


J.P.S. – Em geral eu acho que nossa participação nesse tipo de evento é coadjuvante, nossos companheiros vão lá para se somar a esse esforço político de democratizar a comunicação e ao mesmo tempo trazer o acúmulo do debate que vai gerando para dentro do movimento. Mas nós não queremos ser hegemonia, nem dirigir, nem ter um papel vanguardista, por isso sempre ficamos mais na retaguarda aprendendo com esses companheiros que tem uma visão mais aprofundada, que tem uma clareza maior sobre quais são os caminhos para democratizar os meios de comunicação.

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Do Núcleo Piratininga de Comunicação