Não mereceu grande destaque na imprensa brasileira (salvo registros feitos no interior de cadernos, a exemplo da Folha de S.Paulo) a notícia, proveniente de Buenos Aires, de que foram identificados pela Equipe Argentina de Antropologia Forense os corpos de três integrantes do grupo ‘Mães da Praça de Maio’, entre as quais a sua fundadora, Azucena Villaflor.
O movimento é mundialmente conhecido, mas não custa relembrar: em plena ditadura argentina, o grupo de mães com filhos desaparecidos peregrinava em busca de informações junto à Casa Rosada, o Ministério do Interior, a Polícia Federal, as embaixadas, o Arcebispado e a Nunciatura Apostólica sem conseguir qualquer resposta. Costumavam reunir-se na Igreja de Santa Cruz, no bairro portenho de San Cristóbal.
A história que se segue é de puro terror. No dia 8 de dezembro de 1977, houve um encontro na igreja, a que compareceu o monstro-capitão Alfredo Astiz (da Marinha), apresentando-se como irmão (fictício) de um de um desaparecido. Narra o Clarín (9/7/2005), de Buenos Aires:
‘Na saída, o militar ‘marcou’ as mulheres, dando-lhes um beijo de despedida. Não só beijou Ballestrino e Ponce, mas também saudou outras participantes, entre as quais se encontravam as monjas francesas, cujos corpos ainda não foram encontrados’.
Trata-se de Esther Ballestrino de Careaga e Maria Eugenia Ponce de Bianco, dois dos corpos identificados ao lado do de Azucena Villaflor. As duas foram seqüestradas naquele mesmo dia, na porta da Igreja de Santa Cruz. E Azucena dois dias depois, num sábado, quando caminhava até o mercado em busca de comida para a neta. Jogaram-na ao mar de um avião, num dos famigerados ‘vôos da morte’.
O Clarín é pródigo em detalhes tocantes. Numa entrevista coletiva à imprensa, o grupo remanescente das ‘Mães da Praça de Maio’ (hoje são poucas, mas persistentes em suas passeatas às quintas-feiras na praça) contou que o achado foi recebido por elas ‘com dor, mas com a firmeza de continuar exigindo justiça’. Recordaram: ‘Eles pensaram que, depois dos seqüestros, não iríamos à praça na quinta-feira seguinte, mas fomos’.
Pedagogia político-midiática
É redundante perguntar sobre o extraordinário deste acontecimento. Resume-se aí em poucas palavras não apenas a brutalidade extrema de uma ditadura, mas também a baixeza, o apequenamento humano de seus gestores em todos os escalões. A história universal da infâmia (título, aliás, de um livro de Jorge Luis Borges) particulariza-se em detalhes, como o do beijo de despedida de Astiz. Mas também nas evidências de que as autoridades sabiam há 28 anos onde se achavam os corpos, sem jamais dizer nada às famílias das mães assassinadas.
Este acontecimento e seu tratamento noticioso prestam-se à observação crítica da imprensa. Se perguntássemos a qualquer editor de jornal por que o fato não teve maior repercussão na imprensa brasileira, ele certamente responderia que se trata de uma questão argentina. A resposta seria de ordem técnica: um acontecimento dessa natureza ganharia as primeiras páginas da imprensa nacional se fosse algo relativo ao Brasil. Neste argumento predomina o critério da proximidade, um dos vários que condicionam a produção da notícia.
Entretanto, na era da globalização, é preciso relativizar esse critério. Não só as tecnologias da informação reduzem as antigas distâncias geográficas como, do ponto de vista de uma política de cidadania continental, os fatos de um país sul-americano de repente podem pertencer ao âmbito dos nossos cuidados nacionais. Ainda mais quando passamos por um regime ditatorial por cujos desmandos e danos objetivamente avaliáveis continuamos pagando caro.
Não basta a ‘lavagem’ da História pregressa pelos ensaios memorialísticos ou pelas indenizações financeiras às vítimas. É fundamental estar sempre presente na consciência coletiva o alerta contra tudo o que possa representar um atentado à normalidade constitucional ou aos padrões civilizatórios pelos quais se bate o melhor da modernidade ocidental.
Por isso, o acontecimento argentino é também nosso. A monstruosidade dos ‘vôos da morte’ é análoga à de outras invenções rotineiras na longa noite de trevas da ditadura brasileira. A descoberta dos restos mortais de Azucena Villaflor deveria ter figurado nas primeiras páginas de nossa imprensa cotidiana – assim como figurou na primeira página do Clarín – se o jornalismo aqui praticado tivesse um horizonte cívico e não apenas midiático.
Fazer os mais velhos relembrarem ou mostrar aos mais novos todo o horror do trauma democrático pode ser o começo de uma pedagogia político-midiática para o espaço público.
******
Jornalista, escritor, professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro