Começo aqui algumas anotações que podem ajudar outros a lerem a biografia que do escritor Paulo Coelho fez o jornalista e biógrafo Fernando Morais.
Ao lado de Alberto Dines, que cultiva um gênero mais que esquecido em nossas letras, o da biografia de escritores – fez a de Stefen Zweig, na linha do que fizeram Raimundo Magalhães Jr. e Lúcia Miguel Pereira sobre Machado de Assis (procedeu diferentemente Octávio Tarquínio de Sousa ao fazer as biografias de Dom Pedro I, José Bonifácio etc) –, Fernando Morais não precisa provar a ninguém a competência no ofício.
Na verdade, com certa licença poética, pode-se dizer que ele estreou no gênero fazendo pequena biografia, não de uma pessoa, mas de um país, por assim dizer. Foi A Ilha (São Paulo, Editora Alfa-Ômega, 1975). Ali comprovamos que ele, ao contrário dos ficcionistas, nada inventava, preocupado em tudo documentar, como este escritor pôde conferir ao visitar Cuba dez anos depois. É também o que faz Ruy Castro em suas biografias, como a de Garrincha, onde tudo está minuciosamente pesquisado.
O livro de Fernando Morais foi para mim e para Oswaldo França Júnior um mapa de viagem. Anotávamos o que víamos e íamos conferir se Fernando Morais tinha escrito a respeito daqueles temas e qual tinha sido o seu olhar. Daquela viagem resultou um artigo, escrito a seis mãos, por Lucélia Santos, Fernando de Barros e este que lhes escreve, publicado na revista Playboy (abril de 1985). Quem sugeriu a Mario de Andrade o meu nome para escrever sobre Cuba foi Geraldo Galvão Ferraz. Até então eu publicara apenas contos na revista.
Referência sólida
Sim, prezados leitores, por trás das palavras cumprem antes sua função os bastidores. E depois também! Oswaldo França Júnior escreveu um livro, fruto de anotações que fizera na mesma viagem. É Recordações de Amar em Cuba (Rio, Editora Nova Fronteira, 1985). O livro de França causou tamanho impacto que a escritora catarinense Urda Alice Klueger publicou um segundo livro, Recordações de Amar em Cuba II (Florianópolis, Editora Lunardelli, 1995).
Infelizmente, como sói acontecer no Brasil, a escritora, que pertence aos quadros da Academia Catarinense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico e da União Brasileira de Escritores, ainda que seja autora de mais de dez livros, é insuficiente conhecida fora de seu estado natal.
Aliás, a importância dessas pequenas academias é uma nota à parte. Fernando Morais lembra nas abas de seu novo livro que é membro da Academia Marianense de Letras (MG), onde ocupa a cadeira 13, cujo primeiro titular foi o presidente Tancredo Neves, aquele que, como a personagem de Roque Santeiro, foi sem nunca ter sido.
Os leitores que saboreiem a leitura da biografia de Paulo Coelho. No geral, ela segue os passos das de Olga (São Paulo, Alga-Ômega, 1985; reeditada pela Companhia das Letras em 1993), de Chatô, o rei do Brasil (São Paulo, Companhia das Letras, 1994) e de outros estudos biográficos que dão ao jornalista uma sólida referência no gênero biografia.
Tribunal da história
Biografia é palavra que chega ao português no século 19, na leva que trouxe também biologia, bioquímica, biofísica e outros compostos que, baseados no grego e no latim, produziam novas palavras.
Mas no grego a palavra biographía existia desde o século 6. No francês e no inglês chegará apenas no século 18. Este registro é importante por mostrar o berço das palavras, que não raro mudam de significado ao correr dos séculos. Tucídides, Suetônio e Plutarco já faziam biografias, mas o gênero não existia. Ou não existia com esse nome.
Plutarco planejou suas Vidas Paralelas com 50 pares, dos quais só conhecemos menos da metade. A respeito do método e dos propósitos de Plutarco, observa Voltaire Schilling:
‘Longe de ser um levantamento de excentricidades e cacoetes de gente famosa, em cada um dos livros descortina o leitor um amplo panorama da época em que os heróis dele viveram. Modesto, ainda que não ambicionasse ser um Tucídides, enfatizou no preâmbulo a Alexandre e César que escrevia sobre `vidas´ e não sobre `história´. É a política, são os costumes e as instituições, a mentalidade, as circunstâncias em que a ação ocorre, os discursos, as arengas, as batalhas, quase tudo isso se encontra na narrativa dele. No final de cada livro dedicado a cada um dos pares ele opera uma synkresis, a comparação entre os dois escolhidos. Trata-se de uma avaliação final deles como se estivessem frente a um julgamento do tribunal da história. Até os nossos dias os três grossos tomos que compõem as Vidas Paralelas continuam sendo uma das melhores narrativas sobre o mundo greco-romano antigo. (*) A ordem completa era: 1) Teseu e Rômulo; 2) Licurgo e Numa; 3) Sólon e Publícola; 4) Temístocles e Camilo; 5) Péricles e Fabio Máximo; 6) Alcibíades e Coriolano; 7) Timoleonte e Emilio Paulo; 8) Pelópidas e Marcelo; 9) Aristides e Catão o velho; 10) Filópedes e Flamínio; 11) Pirro e Mário; 12) Lisandro e Sila; 13) Cimón e Lúculo; 14) Nícias e Crasso; 15) Eumenes e Sertório; 16) Agesilau e Pompeu; 17) Alexandre e César; 18) Fócio e Catão o jovem; 19 e 20) Ágis e Cleômines/Tibério e Caio Gracco; 21) Demóstenes e Cícero; 22) Demétrio e Antônio; 23) Dion e Bruto’.
Uma linha e meia
Duas coisas estão me desarrumando na leitura do novo livro de Fernando Morais. Como aprecio a conversa clara, não hesito em registrar que tenho por esse autor uma grande admiração. Não apenas pelo estilo como jornalista e biógrafo, mas também por sua ação política. Quando secretário de Estado da Cultura de São Paulo organizou, com a ajuda de pessoas como Pedro Paulo de Sena Madureira e Pedro José Braz, a mais ampla efervescência que tiveram as oficinas culturais, que chegaram a ter mais alunos do que a USP, com a diferença de que eram oferecidas não apenas na capital, mas num grande número de cidades, sem discriminar o interior – antes, privilegiando-o. Tinha sido o interior que levara Orestes Quércia a tornar-se governador, aliás. Na capital, corria a pergunta: ‘Como ele se elegeu se ninguém votou nele?’. É proverbial o paroquialismo de certas referências da mídia que se julgam formadoras de opinião.
A presença de Paulo Coelho na Feira do Livro de Frankfurt precisa de alguns esclarecimentos adicionais. A foto da página 531, com a legenda ‘Paulo dá entrevista na Feira de Frankfurt ao lado de Chico Buarque, um dos poucos brasileiros a lhe dar alguma atenção na ocasião’, precisa ser mais bem explicada. E enquanto estamos vivos, pois Roberto Drummond já morreu!
A ocasião era outubro de 1993. Eu integrava a delegação brasileira de escritores e posso assegurar que o desconforto dos brasileiros teve no contexto sutis complexidades que Fernando Morais não pôde captar ou, tendo captado, não achou relevante ou pertinente registrá-las.
Cada leitor vê as coisas a seu modo, na linha do que Umberto Eco denomina Obra aberta. Ou na de Luigi Pirandello, Assim é se lhe parece. Mas no caso de biografias, o que lhe pareceu deve ter por base o que pôde ser documentado.
Assim, a outra coisa que estranho é que um erro grave atinja justamente Alberto Venâncio, o advogado e escritor que mais batalhou para que o livro de contos Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, o livro mais censurado no período pós-64 (proibido de 1976 a 1989) fosse enfim liberado judicialmente, o que obteve em grau de recurso, no TRF. Pois, na página 565 está escrito: ‘Mais um ano e seria a vez de o próprio Celso Lafer ocupar a cadeira de Alberto Venâncio’. Ora, como na ABL vaga nova só com a morte do imortal, Alberto Venâncio foi retirado da vida e do convívio dos imortais (aliás, um convívio que Paulo Coelho parece desprezar, pois raramente vai à ABL) numa linha e meia!
Claro, o erro pode ser corrigido em nova edição. Mas é incompreensível não que o autor cochile (afinal até Homero cochilou), mas que nisso seja seguido por aqueles que fizeram a preparação e a revisão de textos.
Êxito e qualidade
Pretendo escrever mais sobre a biografia, cuja leitura recomendo. É, mais que um documento, um monumento para que entendamos os caminhos e descaminhos na vida de uma personalidade brasileira que ganhou o estrelato internacional, não por motivos inerentes a seu ofício, mas pelo modo como o exerce para além do texto.
A mídia em geral quer que sejamos contra ou a favor de temas, personalidades. Ora, que importância tem, à luz dos critérios adotados, com deslavada preferência pelo êxito comercial, um escritor ser contra ou a favor do escritor que mais vende no Brasil e no mundo?
Porém, se o que se quer é entender um fenômeno, não se pode rebaixá-lo a seus aspectos puramente mercadológicos. Muitos livros situados entre os mais vendidos jamais fizeram com que a Humanidade avançasse um milímetro na História. Outros, clássicos encalhes editoriais, obtiveram êxito que não pode ser medido, muito menos comercialmente, pois o bem que causaram é intangível.
Ainda assim, a biografia que mais tem vendido nos dois últimos milênios é a de um dileto filho do judaísmo, Jesus Cristo, nas quatro versões aceitas, a dos quatro Evangelhos oficiais, já que os apócrifos têm sido insistentemente recusados, apesar da grande curiosidade que provocam. Seu êxito, entretanto, não pode ser avaliado pelas tiragens editoriais.
Paulo Coelho tem o seu lugar em nossas letras, mas que seu êxito comercial não seja confundido com qualidade literária. O cachorro-quente vendido na esquina vende mais do que o fino prato dos restaurantes, mas quem busca sofisticação culinária, bom gosto, paladar agradável e convívio adequado ao ato social de comer sabe que não encontrará essas qualidades na esquina.
******
Escritor, doutor em Letras pela USP, professor e vice-reitor de Pesquisa e Pós-graduação da Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro) e autor, entre outros, dos romances Avante, Soldados: Para Trás (1992), Os Guerreiros do Campo (2000) e Goethe e Barrabás (2008)