Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cobertura deficiente das despesas do setor público

A grande imprensa, lideranças empresariais de várias áreas de atividade, forças partidárias e parlamentares, entre outros atores relevantes da sociedade civil e da sociedade política, têm focado as despesas do Estado pelo ângulo do setor público não-financeiro. Espantam-se, com inquestionável indignação republicana, contra crimes contra a administração pública, como corrupção, peculato, emprego irregular de verbas públicas, concussão etc. Arregalam os olhos também, novamente com irretocável republicanismo, contra a improbidade administrativa, os desvios e maus usos das verbas públicas. Alocação irracional de recursos, desperdício, gastos fora dos padrões por membros do primeiro escalão, com cartões corporativos e assim por diante, são, da mesma forma, justamente denunciados pelos referidos estratos da cidadania.


Se é fundamental que a cidadania fiscalize e controle as finanças públicas, também o é avaliar criticamente qual tem sido a abordagem hegemônica dessa necessária atividade cívica.


O setor público possui dois grandes grupos setoriais de despesas: não-financeiras e financeiras. Entre as despesas não-financeiras destacam-se os gastos com pessoal e encargos sociais, as despesas correntes com a manutenção dos equipamentos e com o funcionamento da máquina governamental e os investimentos. As despesas do setor financeiro são basicamente com a dívida pública: gastos, por um lado, com pagamentos de juros e encargos, e, por outro, com amortizações de empréstimos.


Juros e amortização da dívida


A abordagem hegemônica tem profanado as despesas públicas do setor não-financeiro e sacralizado as despesas financeiras. Gastos públicos não-financeiros são tendenciosamente vistos como perdulários ou ilícitos. Obviamente, há que se recusar o perdularismo – embora haja importantes divergências sobre que tipo de despesas assim o são – e a ilicitude. Mas o que interessa mostrar é que os gastos financeiros são considerados sagrados – e não à toa. Por quê? Por que a principal política pública da era da estabilização monetária liberalizante implementada desde 1994 e, sobretudo, desde a estruturação, em 1999, do atual tripé que sustenta a política macroeconômica – câmbio flutuante, sistema de metas de inflação e arrecadação de superávit primário – tem sido o pagamento das despesas com a dívida pública, conforme a tabela abaixo comprova.


 









ORÇAMENTO GERAL DA UNIÃO – 2007
EXECUÇÃO POR GRUPO DE NATUREZA DE DESPESA
PAGO (R$)






























1 – Pessoal e Encargos Sociais 125.071.876.242 10,67%
2 – Juros e Encargos da Dívida 140.052.913.821 11,95%
3 – Outras Despesas Correntes 399.202.037.921 34,07%
4 – Investimentos 8.620.913.494 0,73%
5 – Inversões Financeiras 26.938.067.649 2,29%
6 – Amortização da Dívida 471.607.267.993 40,25%
Total 1.171.493.077.120 100%




Fonte: Contas Abertas

 


Desequilíbrio fiscal é conseqüência


Somando os itens 2 e 6, constata-se que 52,2% das despesas da União, em 2007, foram destinados ao pagamento de juros e amortizações da dívida pública. As amortizações subdividem-se em dois tipos: principal efetivamente pago (8,25%) e refinanciamento de títulos vencidos (32%). Assim, a adição dos juros ao principal efetivamente pago revela que a União desembolsou, no ano passado, 20,2% das receitas públicas, quase R$ 237 bilhões, com despesas da dívida pública.


Mas será que a dívida pública é toda ela injusta, deixando de lado que só uma auditoria pública poderia avaliar isso com mais consistência? Quanto da despesa com juros poderia ser, de algum modo, legitimado e quanto dela pode-se dizer que está sendo capturado por grupos de interesses financeiros credores do Estado? Embora em relação ao PIB a Dívida Pública Federal esteja diminuindo nos últimos anos, o que é bom, é fato também que ela alcançou, em abril, o valor de R$ 1,356 trilhão. Segundo avalia, em seu último livro, Macroeconomia da Estagnação, o economista e ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, a principal causa do desajuste fiscal brasileiro são os altos juros implementados pelo Banco Central. Ou seja, o desequilíbrio fiscal não é a causa, mas sim, a conseqüência dos altos juros de curto prazo praticados no Brasil, aos quais grande parte dos títulos públicos está indexada.


Investidores e interesse público


Por que um regime de metas de inflação, cujo centro atual estabelecido é de 4,5%, necessita de uma taxa Selic de 12,25% ao ano, se outros países que implementam essa mesma política monetária conservadora monitoram metas semelhantes com taxas de interesse menores? Por que o Brasil é o mercado emergente campeão em juros altos? Bresser Pereira diz textualmente que ocorre no Brasil a ‘captura do Banco Central pelos interesses rentistas’. Ele estima em 4% do PIB a captura do orçamento público, na forma de juros ilegítimos, porque sobrepagos, pela coalizão rentista. Isso significa que, anualmente, cerca de R$ 100 bilhões da arrecadação de impostos está sendo desviado para as mãos dos muito ricos, capitalistas do setor financeiro e rentistas, uma seleta minoria de famílias que financia o Estado brasileiro.


O foco restrito da grande mídia nas despesas públicas não-financeiras explica-se por seus vínculos diretos e indiretos, materiais e ideológicos, com a macroeconomia pró-rentismo e capital financeiro. Tal foco precisaria ser ampliado para o que é essencial, o questionamento da centralização da Autoridade Monetária nas mãos de um Banco Central que intermedeia a relação entre rentistas e cofres públicos em benefício dos investidores e em detrimento do interesse público e das políticas de promoção de justiça social.

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Professor universitário do Unicentro Belas Artes de São Paulo e da Trevisan Escola de Negócios