Diversos jornais europeus republicaram as polêmicas charges do profeta Maomé na quarta-feira (1/2). A ação de apoio dos diários ao dinamarquês Jyllands-Posten e em defesa da liberdade de expressão intensificou a revolta muçulmana e gerou um debate mundial sobre liberdade de imprensa e intolerância religiosa.
A ira dos muçulmanos no mundo árabe aumentou na quinta-feira (2/2), com milicianos palestinos realizando um seqüestro relâmpago de um cidadão alemão e manifestantes no Paquistão gritando ‘morte à França’ e ‘morte à Dinamarca’. Os escritórios da União Européia na Faixa de Gaza ficaram cercados por milícias e algumas delas invadiram hotéis e apartamentos na Cisjordânia à procura de estrangeiros para tomarem como reféns.
Neste mesmo dia, Mahmoud Zahar, líder do Hamas, visitou uma igreja em Gaza e prometeu proteção aos cristãos, depois que milicianos do Fatah ameaçaram atacar igrejas como alvos de protesto. O ministro do Exterior da Dinamarca afirmou que todos os dinamarqueses – exceto dois diplomatas – deixaram a Cisjordânia e a Faixa de Gaza nos últimos dias.
Na sexta-feira (3/2), os protestos se espalharam até a Indonésia, com extremistas islâmicos jogando ovos na Embaixada da Dinamarca e queimando a bandeira dinamarquesa. O governo da Indonésia condenou a republicação das charges, assim como o do Afeganistão. No Iraque, líderes islâmicos pediram para fiéis organizarem protestos depois das preces semanais.
Resposta francesa
Na França, jornalistas se reuniram na quinta-feira (2/2) para protestar contra a demissão do editor Jacques Lefranc, do jornal France Soir, após a republicação das charges do profeta. Embora tenha demitido o editor, o jornal não tinha pedido desculpas publicamente até o fechamento desta edição. Ex-colegas de trabalho de Lefranc publicaram na primeira página da edição de sexta (3/2) um desenho de muçulmanos furiosos queimando uma bandeira da Dinamarca sob a manchete: ‘Ajude, Voltaire, eles estão todos ficando loucos!’ – em referência a declaração atribuída ao filósofo (‘Eu não concordo com o que você diz, mas eu vou lutar até a morte pelo direito de dizê-lo’). Em editorial, o jornal afirmava que ‘a melhor maneira de lutar contra a censura é não ser censurado. Neste caso, significava publicar estes cartuns’.
O Le Monde publicou (3/2) um cartum próprio na primeira página, que mostrava um artista desenhando a imagem do rosto de Maomé a partir de repetições da frase ‘Eu não posso desenhar Maomé’. Em seu editorial, o jornal defendia a liberdade de ridicularizar religiões: ‘Um muçulmano pode chocar-se com um cartum, sobretudo um malicioso, de Maomé. Mas uma democracia não pode instaurar censura sem passar por cima dos direitos humanos’. Já a embaixada da França na Argélia descreveu as caricaturas como ‘chocantes’, em uma declaração condenando ‘todos aqueles que feriram indivíduos em suas crenças ou convicções religiosas’.
O governo francês manteve-se neutro, afirmando que as caricaturas são de ‘inteira responsabilidade do jornal que as publicou’. Esta, entretanto, não é a opinião da ministra do Exterior austríaca, Ursula Plassnik – cujo país preside a União Européia. Para ela, líderes da UE têm responsabilidade para ‘condenar claramente’ insultos a qualquer religião. O ministro do Exterior da França, Philippe Douste-Blazy, afirmou que a liberdade de imprensa não poderia ser colocada em dúvida, mas pediu prudência. ‘A liberdade deve ser exercida em um espírito de tolerância, respeito das crenças e religiões, que são a base do secularismo do nosso país’, afirmou ele. O ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, disse preferir ‘um excesso de caricatura a um excesso de censura’. Sarkozy juntou-se aos jornalistas que protestaram contra a demissão do editor do France Soir.
‘Desculpas’ públicas
O jornal dinamarquês Jyllands-Posten – primeiro a publicar as caricaturas, em setembro do ano passado – reconheceu (3/2) que não teria divulgado os desenhos se soubesse das conseqüências de sua decisão. Em artigo intitulado ‘E se?’, o jornal afirma que, se ‘o editor-chefe tivesse perguntado a natural, mas hipotética questão: ‘e se soubéssemos de todas as conseqüências da publicação destes 12 cartuns impressos no suplemento cultural no dia 30 de setembro do ano passado? Ainda assim teríamos publicado?’ Hoje a resposta seria não! Se soubéssemos que terminaria com ameaças de morte e que as vidas de dinamarqueses estariam em risco, naturalmente não teríamos publicado os desenhos’.
‘A questão, entretanto, é que ninguém saberia de todas as conseqüências. Então, a questão não tem sentido’, dizia o texto. ‘Aceitamos boicotes comerciais, mas ameaças de morte estabelecem a fronteira entre o que é aceitável e o que não é’, continuava. ‘O Morgenavisen Jyllands-Posten [nome completo do jornal] reconhece que subestimou o sentimento de muitos muçulmanos sobre seu profeta. Aqui está nossa desculpa. E em relação a isto somente. O jornal não tem nada a desculpar sobre os poderes fundamentalistas que abusaram de toda a situação para aumentar sua propaganda’, concluía.
O diário ainda esclarece como vê as diferenças entre as sociedades ocidentais e orientais: ‘No mundo que é caracterizado por valores cristãos, a religião é um interesse pessoal para o indivíduo, enquanto nos países nos quais a religião é estritamente administrada por leis, o Islã é um pacote completo onde ninguém pode ‘pegar e misturar’. Respeitamos isto, mas desde que ninguém nos force a seguir seus valores. Entre colegas, nós brincamos dizendo que há muito no jornal que as pessoas podem se beneficiar ao ignorar. Se os fundamentalistas não se levassem tão a sério, eles também veriam os benefícios de ignorar partes de um jornal dinamarquês, baseado na democracia, que não os processará’.
Rushdie seria exemplo
Hassan Nasrallah, líder do movimento xiita libanês Hezbollah – apoiado pelo Irã –, afirmou que se os muçulmanos tivessem executado o escritor anglo-indiano Salman Rushdie, outros não ousariam insultar o Islã. ‘Tenho certeza de que há milhões de muçulmanos que estão prontos para dar suas vidas a fim de defender a honra de nosso profeta’, disse.
Em 1989, Rushdie foi condenado à morte pelo aiatolá Ruhollah Khomeini, através da criação de um fatwa (decreto islâmico), após a publicação do best-seller Versos Satânicos. O autor era acusado de, com o livro, insultar o profeta Maomé, e por isso teve de permanecer escondido por anos. Em 1998, o ministro do Exterior Kamal Kharazi prometeu não fazer nada em relação ao fatwa, embora o sucessor de Khomeini, aiatolá Ali Khamenei, tenha afirmado em janeiro do ano passado que Rushdie ainda merece morrer.
O jornal jordaniano Shihan publicou na quinta-feira (2/2) algumas das caricaturas, afirmando que queria mostrar a seus leitores o quão ofensivo os desenhos eram, mas também pedindo aos muçulmanos para serem ‘moderados’. Em editorial, o jornal ressaltou que o Jyllands-Posten tinha se desculpado, ‘mas, por alguma razão, ninguém no mundo muçulmano quer escutar as desculpas’. A edição do Shihan com tais afirmações foi retirada de circulação.
Enquanto isso, nos EUA
Na já existente tentativa de melhorar sua imagem no mundo árabe, extremamente prejudicada pela guerra do Iraque e pelo apoio a Israel, o governo americano ofereceu apoio aos manifestantes muçulmanos, afirmando que as imagens seriam realmente ofensivas.
A declaração divulgada pelo Departamento de Estado afirmava que ‘imagens antimuçulmanas são inaceitáveis, assim como o são imagens anti-semitas, rotineiramente publicadas pela imprensa árabe, e imagens anticristãs, ou sobre qualquer outra crença religiosa’. Os EUA, entretanto, defenderam o direito dos jornais dinamarquês e franceses de publicarem as charges. ‘Nós defendemos o direito de indivíduos expressarem seus pontos de vista’, afirmou o porta voz do Departamento, Sean McCormack.
Grandes jornais americanos, como New York Times, Washington Post, Los Angeles Times e Chicago Tribune, não publicaram os desenhos. Representantes dos diários afirmaram que a história poderia ser noticiada sem a publicação de imagens que tantos consideram ofensivas.
Nas Nações Unidas, o secretário-geral Kofi Annan também criticou a publicação dos desenhos, mas pediu aos muçulmanos que perdoem a ofensa e ‘sigam em frente’. ‘Estou estressado e preocupado com toda esta história’, afirmou. ‘Eu compartilho da irritação dos amigos muçulmanos, que sentem que a charge ofende sua religião. Mas também respeito o direito à liberdade de expressão. É claro, entretanto, que a liberdade de expressão nunca é absoluta. Ela pressupõe responsabilidade e julgamento’.
As informações são de Colin Randall [The Daily Telegraph, 3/2/06], AFP [2/2/06], Ibrahim Barzak [Associated Press, 3/2/06], Mouna Naïm [Le Monde, 3/2/06], Gwladys Fouché [The Guardian, 3/2/06] e Joel Brinkley e Ian Fisher [The New York Times, 4/2/06].