O Massacre do Paralelo 11, ocorrido na década de 1960 e descrito por Ulisses Capozzoli na denúncia a respeito da ‘cobertura ininteligível’ da imprensa para as mortes em território dos índios Cintas-largas, em Rondônia [veja remissão abaixo], faz lembrar outros aspectos. Um deles, a dificuldade para se apurar matérias na floresta, demonstra que quando se quer, se faz.
Quando os Arruda Junqueira mandaram seus jagunços exterminar esses índios no Aripuanã, o inesquecível Carlos Rangel, a serviço do Globo foi enviado para Cuiabá, a 2.017 quilômetros da sua Redação, e em seguida ao local da chacina, a quase 1.000 quilômetros dali. Na época, seus editores e chefes, sem a eficácia e a magia do tempo real, esperaram pelo menos 10 dias até que ele despachasse um relato completo.
A coleção do Globo guarda essa reportagem, na qual desenhos a bico de pena substituíam os infográficos de hoje. Rangel retornou ao Rio de Janeiro quase um mês depois e muito do que O Globo publicou foi transmitido por telefone e pelos excelentes teletipos dos Correios. No antiqüíssimo sistema telefônico, as ligações para São Paulo e Rio de Janeiro demoravam até seis horas para serem completadas. Imagine-se o esforço e a paciência de Rangel, um dos mais notáveis repórteres que a imprensa brasileira já teve.
Flechas e balas
O repórter Rangel foi, viu e contou. Outros também o fizeram, em situações semelhantes. Em 1976, o fazendeiro João Mineiro, de Barra do Garças, executou a tiros o padre alemão Rudolfo Lukenbein e o índio Simão Bororo, ferindo outros índios, na Aldeia do Sagrado Coração de Jesus, em Merure (leste mato-grossense). Por acaso, o autor deste artigo, então correspondente da Folha de S.Paulo em Campo Grande, obteve as primeiras informações na sede da Missão Salesiana. Fui em busca de um assunto para o Correio do Estado e deparei com os padres falando no rádio. Apurei o que foi possível e ganhei a capa do jornal. A sucursal de Brasília dispunha de poucas informações e limitou-se a transmitir a São Paulo a nota oficial da Funai.
Mas a antiga Produção do Estado de S.Paulo, com o trio Raul Martins Bastos, Ariovaldo Bonas e Ademar Orichio, enviou para Merure o seu correspondente em Cuiabá, Oscar Ramos Gaspar. Num velho jipe, Oscar viajou o dia todo por estradas poeirentas e esburacadas, desembarcando na aldeia a tempo de recuperar a história. No dia seguinte, Oscar descreveu-a na última página do jornal, espaço nobre também destinado, na época, a uma das maiores coberturas sobre temas indígenas e fundiários na imprensa brasileira.
Algumas malárias depois, Oscar bem que poderá contar detalhes desse período em que as chefias de Redações não hesitavam em mandar seus jornalistas até os ‘páramos remotos de alta solidão’.
Mário Chimanovich (editor especial da IstoÉ), também ex-correspondente em Cuiabá, notabilizou-se na redação do Estadão e perante os leitores desse jornal pela ousadia em enfrentar jagunços. É dele parte da história da resistência indígena narrada pelo padre jesuíta Tomás Aquino Lisboa no livro As bem-aventuranças do povo Munkü, em Mato Grosso.
A Produção (mais tarde ‘Mesão’ ) do Estado revelou outros grandes profissionais lapidados entre flechas, tiros, árvores gigantescas e cipós: no final da década de 1970, José Marqueiz, um deles, trabalhava na sucursal do ABC mas passava grande parte do tempo à procura dos Krenhakore (também Krenhakarore ou Panará), lá no nortão de Mato Grosso.
Capítulo importante
Existiu, no país, um jornalismo de raça, feito romanticamente mas com muito amor à camisa. Há uma série de jornalistas esquecidos no túnel do tempo, no entanto alguns se perpetuam na memória de quem aprendeu muito com eles.
Luiz Salgado Ribeiro, do time dos especiais do Estadão, inscreve-se entre os notáveis ‘repórteres de índios’ que tiveram o privilégio de chegar primeiro, junto com sertanistas, até mesmo em missões de contato com tribos isoladas – e arredias. Salgado ia muito além da notícia. Na convivência com os irmãos Villas-Boas, no Xingu e em Nova Xavantina, a exemplo de Marqueiz, ele escreveu com didatismo e até foi citado em escolas depois de ajudar o falecido colonizador e deputado gaúcho Norberto Schwantes na fundação de Terra Nova.
Ainda naquela década de 1970, O Globo e o Jornal do Brasil disputavam palmo a palmo a reportagem na selva: a serviço do jornal da condessa Pereira Carneiro, o acreano Edílson Martins passava mais tempo na Amazônia do que no Rio de Janeiro, e o goiano Daniel Lopes brindava a sucursal paulista do jornal dos Marinho com excelentes reportagens. Durante meses, Edílson incursionou na Antropologia e na Sociologia, mostrando casamentos entre índias e brancos capixabas nessa mesma Espigão do Oeste, nessa mesma Cacoal que hoje voltam às manchetes. Também cobriu a guerra entre índios Suruís e Zorós, parentes próximos mas ferrenhos inimigos.
Os jovens universitários já teriam lido o livro Nossos índios, nossos mortos, de Edílson Martins?
Daniel Lopes costumava passar semanas na selva mato-grossense e só saía da toca para se hospedar em algum hotel, à espera do dinheiro que a tesouraria enviava-lhe pelo banco. Uma de suas reportagens mostrou o uso de bicicletas pelos índios Parecis. Amigo do sertanista Francisco Meireles, o jornalista Possidônio Bastos, da sucursal do Globo em Brasília, morreu ainda jovem por flechadas desferidas pelos Cintas-largas.
Alguém sabe a história desse grande repórter? O Globo poderia resgatá-la, no momento em que descrever massacres em território indígena. O próprio Ulisses Capozzoli, autor do alerta publicado neste Observatório, já escreveu muito a respeito das tribos brasileiras, em jornais e revistas. Pesquisador reconhecido e um dos maiores estudiosos da selva brasileira nos últimos 20 anos, ele também poderá contar esse capítulo da mais alta importância para o entendimento dos embates entre índios, fazendeiros, jagunços e garimpeiros.
Lei do menor esforço
Correspondente da Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil e O Globo em Porto Velho, entre 1976 e 1986, fui algumas vezes contemplado com viagens arriscadas aos territórios Suruí, Zoró, Tenharim (na Transamazônica), Apurinãs e Jamamadis (no Purus), Kaxarari (divisa de Rondônia com o Acre e o Amazonas) e Nambiquara (divisa de RO com MT).
Para chegar lá, os jornais pagavam caríssimos fretamentos de táxi-aéreo. Lembro-me das vezes em que pousei na esburacada pista de Riozinho sob chuva, para cobrir a resistência armada dos Suruís aos invasores de suas terras, no Parque Indígena do Aripuanã. Para defender os índios, lá estavam o então presidente da Funai, general Ismarth Araújo de Oliveira, e o apaixonado sertanista Apoena Meireles, filho e seguidor de Chico Meireles.
Tínhamos, ainda, a oportunidade de ouvir quase sempre antropólogos (Berta Ribeiro, Bety Mindlin e Carmen Junqueira, entre outros, vinham de São Paulo para estudar as tribos), sertanistas, seringueiros e garimpeiros. Quando não na própria selva, marcávamos encontros na cabine de telex dos Correios ou no nas mesas do Café Santos, no centro de Porto Velho. Os patrões da imprensa pagavam tudo, porque os leitores apreciavam o assunto. Fazer matéria por telefone era o nosso último recurso. O ‘front’ sempre nos aguardava.
Capozzoli escreveu:
‘A superficialidade da cobertura da mídia em casos como o choque entre garimpeiros e Cintas-largas no dia 7 também reflete a atitude passiva de repórteres que mal lêem os jornais diários, fazendo-o com a mera preocupação de não serem furados por banalidades julgadas importantes pelos padrões discutíveis das redações’.
Por isso, assusta e nos decepciona constatar que, hoje, a lei do menor esforço e o ‘máximo de lucro (ou sobrevivência?) com o mínimo de investimento’ leva alguns jornais brasileiros a se valer do noticiário preconceituoso e nem sempre bem apurado, por sítios e portais amazônicos, a fim de garantir a mínima cobertura das tragédias na selva.
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Repórter na Assessoria de Comunicação Social do MPS, em Brasília; ex-correspondente da Folha de S.Paulo, O Globo e Jornal do Brasil em Porto Velho, Cuiabá e São Luís.