Há algum tempo, não muito remoto, tinha-se a impressão de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva falava pela boca de Frei Betto, que as palavras do dominicano traduziam o que passava pela cabeça do presidente, com a única exceção das alusões ao Cristo, considerado pelo frade como o maior líder revolucionário da História. Ao contrário de Lula, que parecia preferir o argentino Guevara, o Che. Depois de Frei Betto deixar o governo, seu discurso mudou. Continuou sendo amigo íntimo do presidente, freqüentando suas festas, juninas e outras, mas de vez em quando dava umas alfinetadas em direção de sua política econômica pra lá de neoliberal e da falta do ‘social’.
Da crise política e da sucessão de escândalos de corrupção Planalto adentro, poderia se esperar um exacerbação das críticas. No entanto, foi o contrário que aconteceu. Durante sua estadia em Paris, hospedado no Hotel Meurice, um palácio de cinco estrelas em frente ao Louvre, com diárias de 500 a 1 mil euros (onde o franquista Salvador Dali tinha uma suíte permanente), Frei Betto não apenas defendeu seu amigo, como exonerou seu partido de toda e qualquer responsabilidade – e ainda jogou a culpa sobre os parlamentares, que certamente teriam sido corrompidos por alguma entidade virtual saída do último jogo eletrônico da moda.
É preciso dizer que Frei Betto veio a Paris para fazer a promoção de seu livro de suspense Hotel Brésil , em que o autor confessa só ter descoberto o assassino no final, e participar de um colóquio no quadro do Ano do Brasil na França. Nesta mesa-redonda, ele chegou até a reconhecer que o balanço social de Lula deixava a desejar, por culpa é claro da comunidade internacional e do FMI, responsáveis pela austeridade econômica a ele imposta, e não pela falta de vontade política, por eventuais erros administrativos ou simplesmente por opção.
Lula exigiu abertura da CPI
A mesma ladainha Frei Betto repetiu uma, duas, dez vezes, nas entrevistas que deu à mídia francesa, que além da fascinação cega pelo percurso de Lula – salvo raríssimas exceções – entende tanto de Brasil quanto qualquer um de nós da vida sexual dos vaga-lumes. De maneira geral, os jornalistas franceses pararam na eleição de Lula e nas promessas do Fome Zero, de três refeições diárias para todos. Para se ter uma idéia do abismo que os separa do Brasil atual, recentemente um jornalista francês perguntou ao nosso presidente, dirigente de um governo impoluto, que conselho ele dava aos chefes de Estado daqueles países africanos corroídos pelo vírus da corrupção.
Voltemos ao Frei Betto. Na sexta-feira (15/7), enquanto os presidentes da França e do Brasil se encontravam no Eliseu, seu amigo dava uma entrevista a vários jornalistas reunidos no estúdio da rádio estatal France Culture. Além de jurar que Lula nunca tinha ouvido falar do mensalão antes das denúncias públicas do deputado Roberto Jefferson, o entrevistado aplaudiu a postura corajosa do presidente, que, segundo ele, exigiu a abertura da CPI dos Correios, contra a posição de uma parte da cúpula do PT. Jamais, em tempo algum, teria havido qualquer pressão contra a CPI – ouviu-se da boca do frade.
Será que uma vez mais tudo teria sido um complô ou invenção da imprensa?
Como seus contraditores sequer tinham ouvido falar do mensalão, ou só en passant, tudo ficou por isso mesmo; da mesma maneira ninguém replicou as estatísticas anunciadas por Frei Betto, que fazem do governo Lula o mais social que o Brasil já teve. Nem é preciso dizer que ninguém replicou tampouco, talvez por incredulidade, os elogios rasgados a Hugo Chávez, elevado ao grau de ‘presidente mais democrático da América Latina’, e a Fidel Castro, que segundo ele sempre teve e sempre terá o apoio do atual governo brasileiro, pelo menos enquanto Cuba for alvo da ira de Tio Sam.
Tão difícil de engolir, mas num outro registro, foram os qualificativos ao ex-papa João Paulo 2°, um pontífice que, segundo o dominicano, foi muito próximo (acreditem se quiser) dos teólogos da libertação. ‘Ele tinha a cabeça à direita e o coração à esquerda.’
Culpa da elite
Aqui em Paris, Frei Betto só teve um verdadeiro interlocutor, ao ser entrevistado pela jornalista Gisela Heymann, da Rádio França Internacional. Questionado sobre a responsabilidade do PT e eventualmente a do próprio presidente Lula na crise, ele partiu num delírio paranóico digno de um extra-terrestre, que se nega a enxergar a realidade, ou que prefere criar a sua própria; sendo esta segunda hipótese a mais plausível.
Sobre a crise e os escândalos de corrupção: ‘Trata-se de uma manobra das elites para derrubar o governo Lula’.
Sobre a responsabilidade do PT: ‘O partido não tem nada a ver com isso. Os responsáveis são alguns indivíduos, que aliás agiram em nome do pragmatismo político. Conseqüentemente, não se pode falar em corrupção. O PT são 800 mil militantes e não um punhado de pessoas’.
Sobre os erros políticos do presidente Lula: ‘Ele tinha duas bases de apoio: o Congresso e os movimentos sociais. Na primeira metade de seu mandato ele só se ocupou do primeiro, o Parlamento. Agora, enfim, decidiu se voltar para as suas bases sociais.’
Pergunta da jornalista: ‘Como? Reforçando a participação do PMDB no governo?’
Resposta do Frei Betto: ‘Quando o PMDB aceitou entrar no governo, estava se engajando a apoiar a política social do presidente. Não há porque duvidar do PMDB’. [Será que o PTB e os beneficiários do mensalão não conheciam as regras do jogo?]
Por opção ou por cegueira voluntária, Frei Betto vive no país das maravilhas de Alice, não no Brasil. Do outro lado do seu espelho deve existir um país onde esconder dinheiro na cueca é um ato pragmático de quem deseja, quem sabe, limpar a sujeira do lugar.
É de se esperar que as suas palavras não reflitam, nem de perto nem de longe, o pensamento dos militantes do PT, que se sentem traídos, nem o que resta de sua cúpula, devedora de uma severa autocrítica, e ainda muito menos o que passa pela cabeça do presidente Lula.
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Jornalista, redator-chefe da Radio France International