Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sem pedir licença

É fácil culpar os meios de comunicação por parte da paranóia coletiva em torno da violência urbana. Jornais e afins são a voz das autoridades, constroem mitos e preconceitos sobre a bandidagem e pouco se ocupam das vítimas anônimas que se espremem entre os dois lados.

Crianças mortas por balas perdidas, trabalhadores impedidos de voltar para casa, cidadãos comuns que, na luta pela sobrevivência, experimentam a deterioração do tecido social na própria carne. Quem os vê e ouve?

Pessoas nessa posição protagonizam Rocinha, documentário do espanhol Carlos Casas, exibido neste mês em poucas e concorridas sessões especiais no Rio de Janeiro. Patrocinado por uma grife italiana, o filme resulta de três meses de convivência do diretor na favela mais famosa do mundo.

Guiados pelas pessoas, percorremos a Rocinha. Um olhar seu cúmplice projeta fragmentos de vidas cujas limitações – sociais, econômicas, até físicas – são continuamente superadas com coragem, criatividade e determinação. Vidas que demarcam um território: o do morro, contraposto aos bairros de classe média da Zona Sul carioca de que são entranhas.

Perspectiva positiva

Luzes acesas após uma daquelas sessões, num portunhol alla italiana, o diretor não deixou dúvidas de que optou por fazer um registro ‘de dentro’, numa perspectiva assumidamente positiva de seus personagens, entre eles a própria Rocinha, capazes de desafiar tanto a ficção como a realidade.

Até aí, tudo bem: ele toma partido, mas é sincero.

Contudo, quando perguntado se e em que circunstâncias havia negociado com o ‘poder paralelo’ permissão para filmar na favela, Casas negou com convicção que tivesse necessitado recorrer a tal expediente. Imagino mesmo o desconforto do patrocinador que se visse envolvido num caso como o do diretor, de seu diretor tendo que responder por qualquer nível de vínculo com os personagens – criminosos – de seu documentário ‘Notícias de uma guerra particular’.

Da platéia, pessoas da comunidade da Rocinha e simpatizantes igualmente não perderam a oportunidade de mais uma vez condenar a imprensa pelos infelizes clichês que alinham e comparam criminosos e moradores de favelas. Ficou a impressão de que o assunto era tabu, e de que o ‘poder paralelo’, se existia, não se manifestou diante de Salas e sua equipe.

Contradição em termos

Aí, ainda, tudo estaria bem, por razões já sabidas. O problema é o que o que o Jornal do Brasil da véspera trazia numa matéria que chamava para o filme e o debate a que eu assistia. No texto, o cineasta espanhol declara o quanto se sentia seguro em seu endereço temporário no Rio, e dispara contra as operações de repressão ao tráfico que testemunhou: ‘Vi que tudo era farsa da polícia para exibir as imagens na TV e tranqüilizar a opinião pública’. (Caderno B, 13/7/05)

O fato de as pessoas passarem boa parte do tempo na rua, o jeito brasileiro e carioca, a rede de solidariedade que Casas encontrou na Rocinha, cimentada entre outros fatores pela origem comum de dezenas de milhares de nordestinos e descendentes, podem ter contribuído para a sensação – subjetiva – de segurança que experimentou. Objetivamente, existem e respeitam-se códigos não-escritos como o que se manifesta adiante no mesmo texto do JB:

‘As regras eram claras. Não se apontava a câmera para certos lugares: pontos de tráfico, casa de traficante ou de suas namoradas. Os recados chegavam através de moradores.’

Então, o bem-intencionado e premiado Casas não pediu licença ao tráfico para filmar seus retratos que falam por si. A licença veio mesmo sem ele pedir.

Talvez, no debate, ele tenha querido preservar a suas fontes – ou o seu discurso. Os mesmos anônimos moradores, no mesmo jornal que utilmente divulga o filme, acabam por contradizer o discurso do cineasta. Afinal, a mídia que afaga (e é afagada) é a mesma que apedreja (e é apedrejada)?

Ah, a mídia… A culpa só pode ser dela.

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Jornalista, Rio de Janeiro