Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os espiões que entraram na internet

Uma verdade inconveniente voltou ao debate público com o escândalo de espionagem que escancarou um segredo de polichinelo: o da vigilância exercida sobre a internet e comunicações digitais pelos organismos de inteligência dos Estados Unidos (e de outros países). A denúncia de que órgãos de inteligência se dedicavam também a espionar conversas sobre temas comerciais e econômicos chamou a atenção, no Congresso brasileiro, para a relação íntima entre interesses dos Estados nacionais e as empresas que têm sede em seus países. No mundo globalizado, o nacionalismo continua pesando nos negócios.

Diferentemente de países como o Brasil, que na gestão dos investimentos externos não costumam guiar-se nesses temas por considerações de segurança nacional, os Estados Unidos, por exemplo, submetem planos de investimento estrangeiro ao Comitee on Foreign Investment in the US (CFIUS), presidido pelo secretário do Tesouro, e que tem, entre seus integrantes, autoridades do Pentágono e do Departamento de Estado.

Com base em recomendações desse comitê, o presidente Barack Obama vetou, em 2012, a compra de uma usina eólica em território americano por cidadãos de origem chinesa, alegando razões de “segurança nacional”. Foi a primeira vez, em 22 anos, que um presidente americano exerceu esse direito de veto. O argumento foi a proximidade da usina com bases de treinamento naval, que realiza testes de ataques de drones, entre outros, mas a disputa de liderança entre China e EUA no setor de energia limpa deixou desconfianças de que foram outras as motivações.

Fibra óptica

Em 2011, a chinesa Huawei desistiu de comprar a companhia americana 3Leaf Systems após ter a operação desaconselhada pelo CFIUS por temor de transferência de tecnologia às Forças Armadas chinesas. O diretor de Inteligência Nacional dos EUA, James Clapper, chegou a dizer ao Congresso que o negócio atentaria contra a segurança nacional, ao aumentar a dependência em relação a estrangeiros para “componentes-chave” do sistema de telecomunicações.

O caso mais famoso do gênero foi a oposição nos EUA ao esforço da chinesa CNOOC, em 2005, para comprar a petroleira americana Unocal, vista pelos políticos americanos como uma tentativa do governo chinês de controlar um ativo estratégico no país. Menos conhecido, porém, era o papel das companhias americanas de alcance global no sistema de segurança, que ficou evidente com as denúncias do ex-agente de inteligência Edward Snowden, e motivo até de piada das autoridades brasileiras, como a do ministro Paulo Bernardo, em comissão do Senado: “Mandar pelo Gmail? Já vai cópia para quem estiver bisbilhotando.”

Apesar das preocupações, o Windows, da Microsoft, ainda tem franca presença em computadores públicos de Brasília e não se fala em veto a empresas americanas ou de outra nacionalidade no futuro investimento em cabos de fibra óptica a serem instalados para ligar o Brasil à Europa, África e a países sul-americanos. Razoável. Classificar as preocupações levantadas pelo Congresso e pelo Executivo como “patriotada” seria demonstrar, porém, pouca compreensão, tanto da ação do governo quanto do que está em jogo.

Instituição privada

Mais interessado em estreitar laços com os EUA que em aumentar o tamanho das divergências com um dos principais parceiros comerciais e de investimento do país, o governo brasileiro reagiu em tom até mais moderado que o de europeus, que chegaram a falar em ameaça ao acordo de livre comércio entre os americanos e a União Europeia. Dilma Rousseff condenou, como devia, a espionagem com ares de crime sob as leis nacionais, mas trabalhou com os países do Mercosul e da Unasul, por exemplo, para evitar declarações de excessivo conteúdo ideológico e pouco resultado prático.

A reação da equipe de Dilma dividiu-se em três frentes. Na primeira, diplomática, além de buscar um difícil apoio na ONU para uma censura aos maus feitos americanos, quer aproveitar a desmoralização de argumentos dos Estados Unidos, que, paradoxalmente, sempre se opuseram à democratização na gestão da internet, alegando risco de que certos países a usassem para vigiar o fluxo de informações.

Nas audiências realizadas na Comissão de Relações Exteriores no Senado, os ministros insistiram no fato de que a internet é gerida por uma instituição privada americana, a Icann, submetida a leis dos Estados Unidos. No ano passado, foi frustrada uma tentativa, no congresso da União Internacional de Telecomunicações (UIT), de mudar essa situação, mas o escândalo de espionagem poderá alterar o quadro.

Colaboração além do aceitável

A segunda frente de ação do governo, segundo um assessor de Dilma, será a investigação sobre eventual colaboração de empresas brasileiras com a espionagem, punível em lei. Trabalho da Polícia Federal. E, finalmente, discutem-se medidas preventivas. O presidente da Comissão de Assuntos Externos e Defesa Nacional do Senado, Ricardo Ferraço (PMDB-ES), crê que o escândalo facilitará a aprovação de verbas para os sistemas de defesa. Ele, como outros parlamentares, cobrou do governo medidas para evitar acesso, via espionagem, a informações privilegiadas em operações estratégicas do governo, como os leilões dos campos de petróleo do pré-sal.

A descoberta de que motivações comerciais e econômicas influem nas ações de espionagem não é nova. Já na década passada foi objeto de interessante estudo e recomendações no Parlamento Europeu (relatório no site defesanet.com.br/docs/echelon). As denúncias de Snowden deram, porém, maior legitimidade às preocupações atuais com a nacionalização de equipamentos em sistemas sensíveis do setor público. O que ainda não está claro é o efeito que o caso terá sobre as empresas globais de software e hardware, agora suspeitas, nos EUA, de colaborar além do aceitável com a vigilância dos cidadãos e empresas, por difusos interesses de segurança nacional.

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Sergio Leo é jornalista e especialista em relações internacionais pela UnB