Mesmo enquanto a guerra na Síria arrancava nacos cada vez maiores de sua vida, Fidaa al-Baali não parou de documentar o conflito – nem quando seu irmão, um combatente rebelde, morreu na batalha, nem quando oficiais da segurança prenderam seu pai e nem quando o batalhão rebelde a que ele pertencia lançou um ataque de morteiro que matou sua noiva.
Em 5 de julho, Baali, jornalista independente e um ativista antigoverno conhecido por muitos sírios como Mohammed Moaz, morreu em consequência de ferimentos causados por estilhaços que sofreu semanas atrás, quando forças do governo bombardearam seu bairro, Qaboun, nos arredores da capital síria, Damasco. Baali havia permanecido no amontoado de casas durante meses de bombardeio pesado, correndo com sua câmera de vídeo para a cena dos ataques.
Quando as manifestações antigoverno irromperam, em março de 2011, e cidadãos começaram a documentá-las, Baali, que tinha 20 e poucos anos, foi um dos primeiros que ousou mostrar seu rosto. Ele olhava diretamente para a câmera, dando força a um exército de jovens sírios que, enquanto o protesto se transformava em luta armada, levaram a guerra ao mundo, das linhas de frente que os jornalistas internacionais nem sempre podiam alcançar.
As lutas e as perdas da vida de Baali apareciam habitualmente na câmera e nas muitas entrevistas que ele deu por telefone e pelo Skype. Elas pontuavam o ritmo da violência generalizada, injetando um toque de intimidade nas baixas crescentes. Baali não usava arma, mas vivia escondido como um combatente, mudando-se do porão de um amigo para outro. Os repórteres no Skype muitas vezes o viam em uma sala sem janelas, com o estrondo das bombas ao fundo.
“Estamos morrendo aqui, meu irmão”
Ele não falava muito sobre sua história. As conversas com ele eram apressadas e se concentravam no que havia acabado de ver. Mas, com o tempo, sua trajetória pessoal refletiu a mudança no conflito sírio, de um movimento de protesto geralmente idealista para uma insurgência que se tornou mais violenta diante da repressão devastadora do governo, que nem sempre podia reivindicar um alto nível moral. Ele começou a dizer que lamentava ter se manifestado pacificamente no início. A única maneira de derrubar o governo, disse, era usar “balas e Kalashnikovs”.
Baali evoluiu de um jovem brincalhão, que pronunciava mal algumas palavras, para um homem empedernido, que mantinha o senso de humor, mas soava amargurado e cada vez mais militante. “Não temos ninguém além de Deus e do Exército Livre da Síria (ELS)”, dizia.
Baali buscava obsessivamente cenas de bombardeios e de ataques aéreos para relatar o sofrimento dos civis. Ele participou de vários batalhões do ELS, grupo rebelde de composição imprecisa. Muitas vezes, ajudou repórteres estrangeiros na logística para viajarem à Síria. E deixou vídeos e entrevistas que traçam os contornos do conflito. No ano passado, durante uma visita de observadores da ONU para avaliar a crise, Baali, que tinha sido ferido em um braço, apareceu em uma gravação com o braço na tipoia, diante de um grupo de observadores de uniforme, coletes antibalas e bonés azuis. Ele lhes suplicou que se esforçassem para ir às áreas rebeldes, onde o governo não queria que fossem.
“Quando há destruição acontecendo, vocês não vêm aqui”, disse Baali, fazendo gestos duros com a mão sã, sua voz alternando entre a súplica e a impaciência. “Vocês podem se comunicar com a ONU”, disse. “Há pessoas que não podem.” Os observadores ficaram inquietos. Enquanto ele continuava – “Estamos morrendo aqui, meu irmão” –, um deles aproximou-se e o beijou na testa. Baali ficou brevemente surpreso e mudo, mas depois continuou. Mas o grupo de observadores já estava a caminho.
Um “grande legado”
Pouco depois, Baali apareceu em outra gravação, ao lado do cadáver de um homem parcialmente envolto em uma mortalha branca – seu irmão. Mal contendo as lágrimas, ele acariciou o rosto do irmão e beijou sua cabeça.
Na primavera de 2012, forças de segurança detiveram seu pai, em um aparente esforço para intimidar o filho. Seu pai ficou preso em um subúrbio de Damasco em um escritório da inteligência da força aérea. Depois que ele foi solto, os rebeldes lançaram um ataque ao local. Baali estava lá para fazer a reportagem. Mas a natureza indiscriminada da guerra tornou-se ainda mais dolorosa para Baali em abril. Combatentes em quem ele passara a confiar feriram mortalmente sua noiva. Eles lançaram morteiros contra uma parte de Damasco onde ela estava. Os rebeldes tentavam cada vez mais atingir o centro da capital com bombas, que, por definição, são indiscriminadas, e periodicamente matavam civis.
Depois da morte de sua noiva, o zelo de Baali em descrever o conflito vacilou. “Eu quase morri porque estive na mesma área naquele dia”, disse. “Não posso continuar a entrevista. Não sei o que dizer.” Cerca de dois meses depois, Baali tentava atravessar outro bairro conflituoso quando foi atingido por estilhaços de morteiros do governo. Passou semanas em um hospital e finalmente entrou em coma.
Em 5 de julho, quando saiu a notícia de sua morte, os sites de mídia social fervilharam com reminiscências.
O Observatório Sírio de Direitos Humanos, grupo sediado no Reino Unido que documenta o conflito, cumprimentou sua família por seu “grande legado”. Baali, segundo o grupo, foi “um jovem corajoso que sacrificou sua vida para dar voz ao sofrimento da população síria”.
******
Anne Barnard, Hwaida Saad e Hania Mourtada, do Observatório Sírio de Direitos Humanos