Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Laico, ‘pero no mucho’

Como se viu ao longo de toda semana, a impressionante profissão de fé que mobilizou milhares de fiéis das mais diversas procedências, aliada ao show midiático igualmente sem precedentes no país, fez da visita do papa Francisco para a Jornada Mundial da Juventude um retumbante sucesso em quase todos os sentidos. Quase porque, em matéria de organização, o fiasco só não foi maior graças à inabalável simpatia e desprendimento do pontífice, que levou tudo numa boa e, a bem da verdade, também contribuiu um pouco para acentuar a sensação de bagunça generalizada.

Incansável e sempre bem-humorado, o papa não se importou com as falhas grosseiras que se sucederam desde seu desembarque no Rio, quando desencontros no percurso fizeram com que a comitiva acabasse presa num congestionamento e fosse literalmente sitiado pela multidão. Cerco que escandalizou a imprensa estrangeira, que falou até em “sério risco de morte” para o pontífice, dada a facilidade com que as pessoas rompiam o precário esquema de segurança de responsabilidade da prefeitura do Rio. Em meio ao tumulto, um papa sorridente e acessível se encarregava de imprimir a marca pessoal que encantou a todos durante todo o evento, a dica para um apoteótico tour de force midiático que fez do Estado laico brasileiro coisa para inglês ver.

Nada de muito surpreendente, em se tratando não só das longevas raízes católicas no país como por ainda, afinal de contas, se constituir no maior contingente de praticantes no mundo. Desnecessário lembrar a força e a influência que a igreja católica sempre exerceu através dos tempos, que mesmo já longe de reinar absoluta, devido ao crescimento dos cultos evangélicos e à sua própria estagnação, continua tendo um papel relevante na sociedade. Uma referência que o papa Francisco tenta agora reativar, com um discurso mais moderno e afinado com as aspirações populares, dentro da imagem de simplicidade e despojamento que vem forjando desde que foi ungido.

O desafio da “nova evangelização”

Num mundo carente e ávido por ícones, nada mais natural que a humildade do papa impressione, cative e quem sabe, possa efetivamente levar a igreja católica a não só se reciclar, como exorcizar os males que vem corroendo suas entranhas. Nesse sentido, além do reconhecimento e da condenação publica dos escândalos de pedofilia e falcatruas no banco do Vaticano, o papa Francisco reiterou em suas prédicas no Brasil a disposição de rever, pelo menos em parte, o dogmatismo anacrônico que distancia a igreja dos fiéis. Disposição e missão que lhe valeram por parte das mídias os tradicionais e manjados rótulos, como papa pop, o papa do povo, dos pobres, e o mais terrível, papa Chico.

Como sempre, coube à televisão a linha de frente na cobertura do que seria o maior evento religioso já visto no país, com cerca de 3 milhões de pessoas reunidas nas areias de Copacabana entre o sábado à noite e domingo, para a missa de encerramento da JMJ. Uma multidão só inferior aos 4 milhões de fiéis do encontro realizado nas Filipinas, em 1995, naquele que foi o maior público até hoje reunido em torno de uma pessoa, o então papa João Paulo II, o criador do evento. Não satisfeita em acompanhar amiúde o périplo papal, a Globo chamou para si a encenação de uma versão da paixão de Cristo que, esta sim, quase derrubou o papa de cansaço.

Dividida em 14 partes, ou “estações”, a emissora deslocou boa parte do elenco global de novelas para costurar uma via sacra permeada de mensagens atualizadas, entre as quais referências ao desafio da “nova evangelização”, incluindo “o contingente digital” das redes sociais. Ao longo de mais de uma hora de apresentação, em pleno horário nobre – e sem qualquer intervalo comercial –, os famosos se revezaram no palco com amadores, entremeando as frases clássicas do drama da crucificação com mensagens alusivas às posições perenes do catolicismo.

Boas intenções solapadas por interesses

A exemplo de outros eventos importantes, a Globo centrou suas transmissões no palco dos acontecimentos, a praia de Copacabana, com a âncora do Jornal Nacional, Patrícia Poeta, ditando o tom grandiloquente e recheado de superlativos que marcou a cobertura midiática nativa de um modo geral. Com a Globo, em particular, se encarregando de exacerbar o sentido quase messiânico da primeira grande aparição mundial do papa, com sua declarada missão de reaproximar, e por que não dizer, reconciliar a igreja católica com seu rebanho cada vez mais desgarrado.

Tudo muito bom e muito bonito, não fosse a irresistível tendência insuflada pela mídia de transformar o carisma, a comoção e a empatia emanada pelo papa Francisco em um culto pessoal que transcende a mensagem e a própria imagem da igreja católica, cujo desgaste, como se disse, está empenhado em reverter. Sim, pois parece inegável que a overdose midiática se deve em muito a verdadeira veneração despertada pela simpatia e humildade irradiadas pelo pontífice. Cenário inimaginável no tocante a seu antecessor, Bento 16, cujo estilo reservado e circunspecto, agravado pela idade avançada, de fato já não atendia as necessidades da igreja.

Menos mal que o papa parece estar ciente da incompatibilidade entre a idolatria e a missão de restaurar a credibilidade e o peso do catolicismo num cenário difuso como o de hoje em dia, em que as boas intenções são geralmente solapadas por interesses de força maior. Quando não contaminadas por injunções de ordem político-ideológicas ou mesmo de fundo religioso, como as que estão por trás dos sangrentos levantes que se sucedem em países cingidos pelo fundamentalismo muçulmano. Diferentemente do que acontece em nosso país, em que a decepção com a classe política teve o dom de depurar a onda de manifestações das tradicionais conotações partidárias.

Igreja esvaziada

Em que pese os atropelos ao Estado laico, o fato é que o papa Francisco não perdeu a oportunidade de inaugurar um novo nível de diálogo mais condizente com ala vanguardista do catolicismo, exortando a juventude em particular a buscar seus direitos, a lutar contra a injustiça social e sobretudo, contra a praga da corrupção, apontada por ele como determinante para a perda de confiança nos políticos e autoridades. Ficou patente a preocupação em abordar de frente temas sociais diretamente ligados a inusitada onda de protestos que vem agitando o país, além de evidenciar os rumos de uma nova liturgia, destinada a pelo menos minimizar as contradições entre os cânones da igreja e o que os fiéis pensam e praticam.

Esforço talvez apenas no sentido figurado, para não dizer inútil, dado o anacronismo de preceitos arraigados que condenam hábitos impostos pela modernidade, como o uso de preservativos, a legalização da união homossexual, a liberação do aborto ainda que em casos excepcionais, e mesmo questões mais prosaicas, como o resguardo da virgindade, o fim do celibato para os padres etc.

Segundo pesquisa realizada pela Datafolha durante o evento, com 1.279 participantes, a maioria não segue as normas da igreja, mas boa parte entende que o pontífice deve manter o discurso. Nos temas mais delicados, como o aborto e a legalização do casamento gay, a rejeição majoritária dos entrevistados não deixa de corroborar a tese que opõem a crença religiosa, com suas imposições discriminatórias e restritivas, ao processo evolutivo desejável para a sociedade.

Resumo da ópera: é bom ver um papa disposto a enquadrar uma igreja caindo pelas tabelas, de reputação pra lá de duvidosa, até mesmo para poder dar o devido respaldo e conforto espiritual a seu ainda vasto e fiel rebanho. Pena que seu papel pareça fadado a ser meramente decorativo ou pontual, como celebridade e animador de megaeventos anabolizados pela mídia. Afinal, não há mais as cruzadas ou os horrores da inquisição como arma dissuasória, e tampouco dispõe de exércitos e armas nucleares, como ironizou Stalin. Há apenas uma igreja esvaziada e desmantelada pela própria degradação da célula religiosa, e por isso sem o respaldo moral de tempos não muito distantes, em que o papel político-diplomático do papa cansou de safar o mundo de encrenca brava.

Oxalá o buona gente Francisco dê conta do recado e reverta esse jogo.

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Ivan Berger é jornalista, Santos, SP