Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O clima político e a visita do papa nas mídias

A semana iniciada em 21 de julho foi marcada pela realização de um evento religioso de grandes proporções, a Jornada Mundial da Juventude da Igreja Católica, amplificado pela presença do papa Francisco, em sua primeira viagem oficial ao exterior como pontífice. O evento ocorreu no clima do “junho que não acabou“, ou seja, no contexto dos protestos e reivindicações desencadeado pelas manifestações de junho nas ruas do Brasil e que tiveram jovens como protagonistas. Se o evento católico já era alimentado por uma atmosfera política por conta de críticas de grupos da sociedade civil e ações do Ministério Público contrárias à cessão de verbas públicas (entre 320 e 350 milhões de reais) para a organização (abafadas pela cobertura positiva da mídia encantada com os peregrinos jovens de todo o mundo e com o “papa dos pobres”), que traziam de volta à discussão da garantia do Estado laico, com os episódios de junho este clima ganha novos ares.

Falou-se nas mídias noticiosas que o papa faria pronunciamentos de apoio às manifestações políticas nas ruas do Brasil para que se atenda às necessidades básicas da população. Falou-se também que a força da juventude que marcou os episódios – “o junho que não acabou” – se relaciona à força do grupo-alvo do evento católico que trabalha por um mundo transformado e mais justo. Falou-se de convocações pela internet para grupos realizarem manifestações políticas contra os governos em locais por onde o papa passar.

Significações da JMJ

O que não se pode esquecer neste contexto é que Francisco é um líder religioso que veio participar de um evento de sua igreja criado pelo papa João Paulo II nos anos 1980, com o objetivo de retomar o diálogo com a juventude num contexto de declínio do catolicismo no mundo. Com isso, as JMJs se caracterizaram como um evento midiático, um espetáculo, cujo protagonista é o papa. Tanto que com a renúncia do papa Bento 16 em fevereiro passado, os organizadores viviam a crise da possibilidade da não-participação de um novo pontífice e de um consequente fracasso do evento.

Nesse contexto, os discursos das jornadas anteriores não têm tido tom político, do ponto de vista da realidade sociopolítica do mundo e dos países nas quais o evento foi realizado, mas de chamada à juventude para uma revitalização da igreja católica e reaproximação as suas doutrinas, haja vista os símbolos destacados.

Os temores com a ausência do papa foram há muito dissipados e, pelo contrário, a forma como Francisco se apresentou, como homem simples, despojado e solidário com os pobres do mundo, deram à chance de mais publicidade ao evento nesse contato com o público. Há expectativas dentro e fora da igreja de que com o novo papa, caracterizado por discursos e práticas simbólicas de retomada de uma aproximação da igreja católica com os pobres (discurso forte dos anos 1970-80, marcado pela Teologia da Libertação, reprimido nos últimos dois pontificados), a orientação aos jovens assuma um tom sociopolítico mais comprometido com as demandas do tempo presente, animada pela atmosfera das manifestações no Brasil.

No entanto, estas demandas do tempo presente têm colocado temas sobre os quais a igreja católica resiste em avançar e que envolvem não só a questão da homossexualidade e do aborto (como as mídias noticiosas fazem acreditar), mas outras questões-chave ligadas à sexualidade, como o casamento de sacerdotes, o uso de métodos anticoncepcionais e outros, como a liderança das mulheres e as novas concepções de família, incluído um tema antigo, o do divórcio e o direito a outros casamentos.

Aborto e células-tronco

A juventude participante da Jornada Mundial, apresentada como aquela que quer um mundo novo, tem sido orientada nos arraiais católicos romanos a manter posturas tradicionais, no tom do que é feito pelo grupo Canção Nova em seus shows, congressos ou em programas com o PHN (Por Hoje Não Vou Mais Pecar). Na verdade, as motivações de boa parte desta juventude e dos organizadores da JMJ pouco ou quase nada se relacionam às motivações da juventude que foi às ruas do Brasil reivindicar melhores condições de transporte, de educação e de saúde.

Como exemplo pode-se tomar o kit distribuído aos jovens inscritos na JMJ. Matéria do jornal O Estado de S.Paulomostrou que além do Guia do Peregrino, foi incluído o Manual da Bioética, editado pela Comissão Nacional da Pastoral Familiar, vinculada à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), que expõe o ponto de vista tradicional da igreja em relação a vários temas controversos. Pode-se também tomar como exemplo a restrição da organização a eventos (tendas de discussão) organizados por jovens religiosos que trouxessem temas políticos mais densos, em especial aqueles que tocassem nos direitos humanos sexuais e reprodutivos.

Nesse ponto há uma convergência entre católicos e evangélicos que, no Brasil, têm-se apoiado em iniciativas no Congresso Nacional ou em eventos como a Marcha pela Família Tradicional, convocada pelo pastor Silas Malafaia, em junho. O controverso deputado federal presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Marco Feliciano, por sua vez, já elogiou os posicionamentos do papa Francisco quanto às questões que envolvem a família.

Essa situação passou em branco na JMJ nos dias de Francisco no Brasil, já que grupos católicos planejavam politizar e realizar manifestações contra as posturas que consideram intransigentes da igreja católica. Uma delas partiria da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, que organiza um movimento em igrejas de 12 cidades do país. “Não concordamos com a forma como a igreja continua tratando as mulheres, como um ser de segunda classe, quando elas são as principais fiéis. Há uma defasagem enorme entre o que propõe a Igreja e a prática das católicas”, critica a socióloga Maria José Rosado, presidente e uma das fundadoras da organização. Além da legalização do aborto, a ONG defende a pesquisa com células-tronco e é contra o Estatuto do Nascituro e os gastos públicos com a visita do papa. A postura simples e de aproximação com os pobres não permite à socióloga e o grupo vislumbrarem uma mudança de postura da igreja com o papa Francisco: “A cúria foi constituída por João Paulo 2º e Bento 16. Ela é feita à imagem e semelhança de dois papas conservadores” (leia mais aqui).

O “papa dos pobres”

Esses temas controversos, primordiais para grupos como o Católicas pelo Direito de Decidir, não são o ponto central para outros grupos e lideranças católicas historicamente formados na Teologia da Libertação, que têm expectativa de que esta tendência teológica volte a ter espaço com o pontificado de um latino-americano de nome Francisco que dá mostras de humildade e de compromisso com os pobres, o que vem sendo chamado de “nova primavera da igreja”. Uma retomada da Teologia da Libertação no contexto católico, com a volta do diálogo com teólogos antes silenciados, para esses grupos, daria novo fôlego à igreja em sua presença pública e traria novos contornos para a relação religião-política.

As mídias têm revelado na sua cobertura um encanto com a movimentação dos “peregrinos”, a revitalização que trazem ao catolicismo no Brasil, a confraternização dos religiosos e dos povos e, claro, com o “papa dos pobres”. Um ou outro artigo de jornal ou debate na TV ou no rádio levanta reflexões sobre essas dimensões políticas acima descritas. Há que se monitorar e fazer as devidas leituras do fenômeno que certamente terá consequências para a igreja católica, para as demais igrejas e para o Brasil, ainda considerado o maior país católico do mundo.

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Magali do Nascimento Cunha é jornalista, professora da Universidade Metodista de São Paulo e autora do livro Explosão Gospel. Um olhar das ciências humanas sobre o cenário evangélico contemporâneo