Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mídia recorta a fruição da vida

O maestro Villa-Lobos dizia que o ouvido ‘de dentro’ não tinha nada a ver com o ouvido ‘de fora’. Segundo ele, teríamos a capacidade de discernir, para escolher, o foco de nossa audição.

Mas, com a visão, nada disso é possível. Quase tudo entra pelos olhos. O que está sendo visto na velocidade normal, de 24 quadros ou 30 frames por segundo, ou anormal, mais ou menos quadros por segundo ou com a edição e os cortes acelerados, é o que obrigatoriamente nos impregna.

Pelo que vejo na TV, jornais, propaganda e revistas, hoje, tudo o que a mídia pretende é clipar a minha vida. E, ao desfazê-la em milhares de pedacinhos de imagens, arremedos de textos, corruptelas de idéias, acaba por transformá-la numa eventual, mentirosa e simpática visita ao Planeta da Fantasia.

Simbolicamente, ela vive por nós. Corta, acelera, e recorta a fruição de nossa vida. O que faz é nos pré-moldar – e comprimir numa fôrma de bolo de massa amorfa de consumidores desinteressados pelo aprofundamento de qualquer questão.

A mídia, desconsidera os nossos tempos – o meu e o seu, pessoais e intransferíveis –, para idealizar por nós a nossa própria vida. Lixa-se para nós que pensamos, ou tentamos pensar, mesmo que bombardeados por tanto bobagem.

Imagens iconográficas

Ao assassinar o nosso tempo de contemplação, rouba-nos a única possibilidade que teríamos para a reflexão sobre a nossa orientação espacial e existencial no planeta. E… logo nós, os únicos animais que pensamos.

No cinema, creio que era originalmente de Um homem, uma mulher, ficou famoso, e mais do que ‘batido’, aquele take do casal que se abraça na praia e, em slow motion, a câmera gira em torno deles. Todo comercial de margarina que se preza, até hoje, usa o expediente que passou a simbolizar o supra-sumo da felicidade. Tudo está conectado, propaganda e cinema, mentes e corações.

Depois, um dos mais influentes diretores de cinema, Sam Peckimpah, poeticamente, e na contra-mão deste modismo atual, decidiu usar a câmera lenta nas imagens mais duras e violentas. Nos filmes que realizava, e até hoje nos filmes de seus seguidores, ninguém morre morrendo. Morre sangrando quadro a quadro. Ditando moda, estabelecendo tendências e influências, estas imagens iconográficas nos perseguem até hoje.

Reler Salinger, ouvir Copland

Mas é aí que a porca torce o rabo. A alteração da velocidade das imagens expressivas que é agora um sublinhar dos nossos tempos, sejam quais sejam elas, seja na linguagem que for.

Se inconscientes, entre um ritmo e outro, entre estes signos extremos egressos do cinema, para todo e sempre, você eu ficaremos abandonados e sozinhos, incapazes de articular a realidade concreta que se nos apresenta para ‘poetar’ por conta própria. E, então, doentes e feridos, poderemos viver no ritmo que quisermos e poderemos embarcar em direção ao Planeta Realidade.

Ainda bem que, quase que milagrosamente, em Blade Runner, a pomba da paz, mesmo que assustada, sobe pro céu poluído em câmera super lenta! E nós, sempre arranjaremos mais algum tempo para reler o Salinger, ou ouvir, de olhos fechados, alguma obra do Aaron Copland.

E depois, ainda, se sobrar tempo, voltar a este tema.

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Compositor, educador e jornalista, Delfinópolis, MG