Das ruas para a rede, ao vivo e sem cortes. Munidos de um telefone celular, uma conexão 3G e a promessa de um olhar diferente da mídia convencional, integrantes do coletivo Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação, o Mídia Ninja, querem estar onde a grande imprensa não chega. Os protestos que tomam as cidades brasileiras há cerca de dois meses turbinaram a audiência do grupo, que chegou a ter picos diários de 150 mil acessos. Na visita do papa Francisco ao Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro, durante a Jornada Mundial da Juventude, manifestantes entraram em choque com as forças de segurança. Enquanto a grande mídia mantinha a programação normal, os repórteres ninja mostravam o confronto em tempo real.
Cada repórter-ninja tem um perfil de atuação, mas todos têm o mesmo objetivo: quebrar a narrativa uníssona da grande imprensa usando a própria mídia como arma. A cobertura engajada é a principal marca do grupo, que participa ativamente dos fatos que mostra. Após o confronto com a polícia, os repórteres-ninja Felipe Peçanha e Felipe Assis foram detidos no Rio sob a acusação de incitar a violência. Sem apuração e checagem de informações, ou abrindo espaço para que o outro lado se manifeste, o Mídia Ninja começa a chamar a atenção da grande imprensa. E se distancia do circuito alternativo para se converter em protagonista. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo pela TV Brasil na terça-feira (30/7) examinou esta nova forma de comunicação de massa.
Acusado de lançar coquetéis molotov durante manifestação no Rio, o estudante Bruno Ferreira usou o Mídia Ninja para convocar a sociedade a postar na rede vídeos que provassem que ele não jogou os artefatos. Pouco depois, a grande mídia veiculou cenas que ajudaram Bruno a se livrar da acusação. O poder público também começa a despertar para o crescimento do Mídia Ninja. Recentemente, o grupo foi surpreendido com um convite para entrevistar o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes. Mais de 20 mil pessoas acompanharam a entrevista exclusiva ao vivo. O resultado desapontou até mesmo os integrantes do grupo. Falta de objetividade, desorganização e perguntas fora da alçada do prefeito marcaram o encontro, que durou cerca de duas horas. Logo depois, em nota publicada no Facebook, o grupo admitiu as falhas.
O Mídia Ninja foi fundado oficialmente há quatro meses, no Fórum Mundial de Mídia realizado na Tunísia. O grupo é ligado ao Circuito Fora do Eixo, uma rede de produtores culturais. Na internet, circulam acusações de que o grupo receberia verbas do PT.
Para discutir este trabalho, Alberto Dines recebeu um dos fundadores do Mídia Ninja e do Pós TV, o jornalista Bruno Tortura. Ele foi repórter, correspondente e diretor de Redação da revista Trip, onde trabalhou por 11 anos. Também convidou Mauro Malin, editor adjunto da versão online e um dos fundadores do Observatório da Imprensa. Mauro trabalhou no Jornal do Brasil e na Tribuna da Imprensa. Os outros debatedores foram Eduardo Escorel, diretor, produtor e montador de cinema, que escreve no blog “Questões Cinematográficas” da revista piauí e coordena o curso de especialização em cinema documentário da FGV; e Leonel de Aguiar, doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do curso de Comunicação social da PUC-Rio, onde também leciona.
Pré ou pós-jornalismo?
Em editorial, antes do debate ao vivo, Dines ressaltou que as recentes manifestações trouxeram uma nova forma de jornalismo. “Mídia Ninja passou a simbolizar uma forma individual de colher e transmitir informações, notícia em estado bruto, sem passar pela cosmética da edição. Para alguns, Mídia Ninja é também um jornalismo ativista, militante, capaz de romper o conformismo dos meios tradicionais”, afirmou (ver íntegra abaixo). Para ele, o coletivo de mídia pode revitalizar um processo jornalístico que na última década só se preocupou com a sua própria sobrevivência.
A equipe do programa entrevistou um repórter do grupo, de prenome Renan, durante as manifestações em frente ao Palácio Guanabara. Ele explicou oque pauta a sua ação nas ruas: “Notícia para mim é toda a informação que seja sem manipulação, notícia verdadeira. A gente não manipula as informações, a gente mostra a realidade. Essa é a maior diferença. Eu me sinto praticamente o olho da galera aqui. Eu tento dar voz para as duas partes, sem cortar, porque a gente transmite ao vivo e não tem como cortar. De vez em quando eu boto até emoção demais. Isso eu acho que é a principal diferença na narrativa de qualquer ninja”.
Na mesma reportagem, a professora Sylvia Debossan Moretzsohn, do departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), ressaltou a importância da função mediadora da imprensa: “Uma coisa é você ser militante, outra é você participar da manifestação como manifestante, esquecer o papel de mediador que todo jornalista tem que ter. Essa é a tarefa fundamental: você fazer a mediação entre os fatos e o público”. Para a professora, o grupo recupera a reportagem de rua, que o jornalismo tradicional tem deixado de lado progressivamente: “Acho que não só o Mídia Ninja, mas as pessoas, de forma geral, que estão aí com celulares postando, gravando, fotos e vídeos e tal, têm obtido um retorno significativo”.
Uma das coberturas de grande repercussão feitas pelo Mídia Ninja foi o casamento da neta do empresário do ramo de transportes Jacob Barata. “O rapaz que estava cobrindo parece que não sabia onde estava. Não sabia nem o que era o Copacabana Palace. Não é possível você fazer uma cobertura dessa forma. Parece que é uma grande brincadeira. Olha, estou brincando, me manifestando também. O cara chegava perto dele e ele falava: ‘Será que ele quer me dar um beijo aqui? O que é isso?’. É um comportamento que eu não posso considerar como justo por parte de quem quer ser apresentado como alternativa”, criticou a professora.
O papel do mediador
Na avaliação da coordenadora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Ivana Bentes, por estarem próximos aos manifestantes, muitas vezes até acampando junto deles, os repórteres do Mídia Ninja conseguem extrair informações que a grande imprensa não alcança. “A crise, talvez, do jornalismo, é justamente essa crise do especialista, do mediador, achar que a produção de imagem, de vídeo, de texto, é algo restrito a uma corporação. A partir do momento em que eles param, dialogam, perguntam as razões, divergem e tomam partido, vão abaixo uma série de clichês e mitologias em torno do jornalismo. Acho um momento bacana de desmistificação do que é o jornalismo”.
No debate ao vivo, Bruno Torturra ressaltou que a maior conquista do Mídia Ninja é a quebra de uma narrativa midiática única através do jornalismo-cidadão. Torturra sublinhou que os repórteres do grupo não manipulam a notícia durante as transmissões, apenas mostram o seu ponto de vista. “É muito diferente de você alterar informação ou de você ter uma agenda oculta, que caracterizaria uma manipulação. A nossa agenda é muito clara, inclusive, na hora que a gente dá a nossa opinião e se posiciona. O rótulo de manipulação eu não aceito tão facilmente assim”, afirmou.
De acordo com o jornalista, o grupo começou a ser montado há dois anos e, neste período, já fazia transmissões sistemáticas em estúdio. As manifestações acabaram “atropelando” o planejamento do coletivo. Os modelos de tecnologia, recrutamento, financiamento e remuneração ainda estão sendo desenhados. A equipe fixa, que é pequena, está nas ruas todos os dias para dar conta dos múltiplos eventos e, por isso, ainda não pode completar o trabalho de bastidor.
Quem paga a conta?
Bruno Torturra acredita que em 15 dias novas formas de financiamento serão estabelecidas. O plano é tirar o intermediário entre o público e os transmissores das notícias através de crowdfunding ou de assinaturas. O grupo também pretende organizar festas para angariar fundos para a compra de equipamentos. Com a nova estrutura, o Mídia Ninja estará pronto para produzir reportagens editadas, como os canais convencionais. “O desafio que a gente tem agora é múltiplo, que é dar conta do aumento da nossa equipe – tem centenas de pessoas inscritas para participar – descobrir uma solução viável para um financiamento disso a curto, médio e longo prazos e produzir reportagem, informação com mais qualidade”, disse Torturra.
É condenável, na opinião do representante do Mídia Ninja, a grande imprensa ser hostilizada e expulsa de eventos públicos, como ocorreu em diversas manifestações: “Não é uma atitude muito democrática. Eu pessoalmente jamais faria isso, [jamais] apoiaria isso. Mas acho que tem que ser lido também como um sintoma dos nossos tempos. Grande parte da rejeição que muita gente na rua tem aos partidos políticos está se traduzindo cada vez de maneira mais clara na própria grande mídia, porque muita gente na rua se sente vítima da grande mídia, às vezes até em uma versão um pouco simplificada, um pouco ingênua, de que a mídia é uma grande conspiração”. Bruno Torturra disse que se sente incomodado com o estranhamento que a depredação do patrimônio privado e público causam na população, enquanto a violência física da polícia leva a uma indignação em menor escala.
Eduardo Escorel ressaltou que o Mídia Ninja representa uma ruptura da unidade e teve um papel crucial nas manifestações de junho e julho por conta das denúncias da “selvageria” das forças de segurança. “Não há quem possa hoje negar a ação violenta da polícia e isso se deve, não exclusivamente, mas em grande parte, à ação dos ninjas”, disse o cineasta. Dines questionou se o Mídia Ninja conseguirá manter o ritmo das transmissões ao vivo quando as manifestações que ocorrem pelo Brasil diminuírem. Para Escorel, mesmo que não ocorram eventos tão dramáticos, se o grupo tiver a disposição de ir para a rua, sempre haverá o que transmitir.
“O que a gente pôde ver nos últimos dois meses, por um lado, foi um testemunho muito importante. Não sei propriamente se eu chamaria ainda de reportagem ou de jornalismo”, argumentou Escorel. Para ele, sem tirar o mérito do Mídia Ninja, este é um processo em formação e está no plano da “provocação” representada pelos movimentos de vanguarda. A tecnologia não é a novidade, mas sim o testemunho instantâneo que coloca um desafio para a televisão e para o cinema documentário, que precisará se reinventar. “Se alguém quiser fazer um documentário a respeito dos acontecimentos de junho e esse filme for ficar pronto daqui seis meses ou um ano, como é a tradição do cinema documentário, que é mais um réquiem do que um testemunho ao vivo, esse réquiem vai ter que levar em conta o trabalho feito pelo Mídia Ninja”, apostou o cineasta.
Por dentro da notícia
Escorel comentou que a presença da imprensa, convencional ou alternativa, naturalmente incomoda ao poder público e o Mídia Ninja perturba mais ainda, por estar muito próximo aos fatos. “O ponto de vista da Rede Globo é o ponto de vista de um helicóptero ou do alto do terraço dos prédios. Então, há uma diferença entre quem está testemunhando de dentro e quem está de fora. Por razões até compreensíveis, eles querem proteger os profissionais, talvez – há várias explicações para isso. As coberturas ao vivo, tanto as da Globo quanto da Globonews, em termos visuais, informam pouquíssimo do que está acontecendo. E dependem de um texto contínuo que também informa muito pouco”, afirmou Escorel.
Para Mauro Malin, a internet está sendo usada com bastante sagacidade pelo Mídia Ninja, mas é preciso lembrar que a rede de computadores é um meio onde o texto ainda é muito importante. No Brasil, um grande número de pessoas apresenta baixa escolaridade e a televisão é hegemônica – por isso, as transmissões atingem uma parcela influente, porém pequena, da população. Malin acredita que a instantaneidade extrema levaria à perda de relevância: “No limite, você vai parar diante de qualquer acontecimento e vai transmitir ocupando um canal de comunicação, de informação, de jornalismo, que é percebido como relevante. O repórter que está na rua cobrindo escolheu aquele lugar. Eu posso dizer que eu quero que ao mesmo tempo em que o sujeito esteja cobrindo a PM agredindo os manifestantes tenha um repórter cobrindo a PM matando um cara na periferia. É muito mais complicado fazer isso”.
Malin lembrou que a imprensa nasceu partidarizada e ponderou que o Mídia Ninja não defende que o futuro do jornalismo seja a apenas a cobertura militante. Ao contrário, o grupo propõe uma complementariedade com a mídia convencional. “Se a chamada grande imprensa morresse hoje, a alternativa seria muito pior”, alertou Malin. Para ele, a imprensa alternativa pode oferecer aos veículos estabelecidos novos olhares que estes são incapazes de ter por estarem atrelados às velhas práticas da profissão. “A grande imprensa vive do poder. A favor, ou contra. Muito mais a favor do que contra. E, digo eu, qualquer veículo no Brasil é muito mais a favor de qualquer governo do que contra. Agora, eles [o Mídia Ninja] vão para a rua sem esse compromisso e captam o clima de uma manifestação vulcânica que ninguém podia prever”, avaliou Malin.
Canibalismo e cooperação
O jornalista ressaltou que o Mídia Ninja cresce no rastro da falta de agilidade da grande imprensa e relembrou que durante uma das manifestações mais expressivas dos últimos dois meses a TV Globo interrompeu a sua programação para veicular imagens em tempo real, mas não entrevistou nenhum manifestante. “A TV Globo não faz debate ao vivo de nada, nem de futebol. Então, existe um problema que provoca uma repulsa muito grande, o que não justifica você agredir ninguém”, ponderou Malin.
Na avaliação de Leonel de Aguiar, o Mídia Ninja é bem-vindo e pode revolucionar o jornalismo brasileiro. Além de alternativo, o grupo tem pautado a grande imprensa, o que é um fenômeno notável. Para ele, é preciso avançar na discussão da interseção entre o jornalismo feito com base em ativismo político, social e cultural e o papel de mediador do profissional de imprensa. “Eu acompanho, fico acordado até duas, três horas da manhã com a Mídia Ninja, conheço todos eles da rede social e eu acho que é um fenômeno que veio para ficar e vai contagiar a grande imprensa”, avaliou. O professor destacou que o Mídia Ninja fez uma boa cobertura sobre as prisões arbitrárias e a respeito do artifício de usar policiais infiltrados entre os manifestantes.
Um telespectador questionou se o Mídia Ninja está tirando o espaço dos veículos de comunicação convencionais. “Essa é uma crise que já assola [a grande imprensa] desde, pelo menos, a década de 1990”, garantiu o professor. A internet e as mídias sociais já vinham mudando os paradigmas da comunicação. No entanto, Leonel de Aguiar não vê a possibilidade de as mídias alternativas substituírem a grande imprensa porque são complementares. “A questão é a pluralidade. Você aumenta a capacidade da sociedade conhecer os acontecimentos da nossa contemporaneidade”, disse. Para ele, parte da população ainda cultiva a imagem de que a grande imprensa se beneficiou da ditadura e até hoje alimenta a impressão de que o jornalismo no Brasil não exerce o papel de mediação social com pluralidade.
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Hora das mídias alternativas
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 694, exibido em (30/7/2013)
Informação é como mercúrio, impossível pegar, segurar. A dinâmica informativa produz continuamente novos meios e formatos. E foi assim que, durante a ditadura militar, o rígido controle da grande imprensa criou outra imprensa, ágil, crítica, rebelde, logo denominada “imprensa alternativa”.
O levante de junho caracterizou-se como reação aos roteiros pré-fixados, os manifestantes exigiam ser ouvidos, não queriam intermediários. Pode-se dizer que junho foi o mês da linha direta – em todas as esferas.
Justamente no meio das manifestações o mercúrio da informação acabou produzindo uma nova forma de fazer jornalismo a partir de uma palavra de origem japonesa, vulgarizada a partir dos games e animações: ninja é um lutador, um disfarce.
“Mídia ninja” passou a simbolizar uma forma individual de colher e transmitir informações, notícia em estado bruto, sem passar pela cosmética da edição. Para alguns, mídia ninja é também um jornalismo ativista, militante, capaz de romper o conformismo dos meios tradicionais.
Eles se consideram pós-jornalistas, mas há quem os classifique como pré-jornalistas. Certo é que os ninja saíram da quase clandestinidade e saltaram para a fama ao denunciar a repressão policial no Rio de Janeiro: frequentam as primeiras páginas, o Jornal Nacional, as colunas de opinião. Fenômeno do momento, poderão sacudir a imprensa do seu comodismo, espanar convenções e rotinas. Tal como a imprensa alternativa dos anos 1960 e 70, os ninja podem revitalizar um processo jornalístico que na última década só se preocupou com a sua própria sobrevivência.
Pode ser visto como o “jornalismo-cidadão” sonhado a partir das novas tecnologias ou como “jornalismo marginal”, herdeiro direto dos quatro séculos de inconformismo da imprensa histórica.
A mídia na semana
>> Ninguém lhe tira o título de figura mais humana e mais simpática do mundo. Este galardão o papa Francisco conquistou no Rio de Janeiro e o manterá, esperamos, por muito tempo. Mas, por outro lado, a visita do sumo pontífice não conseguiu nos aproximar da ideia do Estado laico; ao contrário, só agravou a noção pouco democrática de que o Brasil tem uma religião oficial. Muito contribuiu para isso a cobertura da visita pela mídia, não apenas intensa, mas sobretudo pouquíssimo isenta e nada pluralista. Jornais impressos não são obrigados a ser equilibrados, porém se pretendem alguma credibilidade deveriam buscar mais equidistância. Mas a TV, sobretudo a TV aberta, é uma concessão pública e como tal não pode estar atrelada a uma religião, muito menos transmitir cultos religiosos integrais. Não foi o que aconteceu com a Globonews na homilia do papa em Copacabana na tarde da quinta-feira (25/7), nem com a via-crúcis transmitida pela Rede Globo ao vivo, na noite de sexta. Quando a mídia não respeita os princípios laicos de tolerância, o Estado adota o mesmo tipo de preconceito e privilégio.