As redes de televisão, como concessões públicas, devem ficar atentas para o fato de que, acima de tudo, sua programação deve prezar pela diversidade. Em um país com quase 200 milhões de habitantes é lógico que as programações não possam contemplar, inteiramente, todos os públicos de maneira homogênea, mas, ao menos, deve-se ter o cuidado de não privilegiar determinados segmentos em detrimento de outros. Neste sentido se faz necessária uma reflexão acerca da ampla cobertura da visita do papa Francisco ao Brasil.
Com os movimentos populares iniciados mais ativamente em junho no Brasil, o espaço aberto nas mídias para a publicização desses eventos só aumentou. Jornais, revistas, sites, programas televisivos extrapolaram em tempo e pauta os assuntos, levantando discussões e reflexões a respeito dessa “massa” que se julga/va despertada. Na TV, por sua vez, a Rede Globo de Televisão, como a maior empresa de telecomunicações do país, foi alvo de grandes críticas pela distorção e redução da visibilidade dos movimentos ocorridos em todo o território nacional.
O telespectador com um olhar mais persistente sobre a programação da emissora e até de suas reportagens sobre o assunto pode notar a mudança de postura diante do acontecimento. A programação inteira foi remodelada. Correspondentes eram enviados para o meio dos movimentos, mas ao serem mal recebidos pelos manifestantes – que a posteriori foram rebatizados de ativistas – tiveram até que retirar a logomarca da emissora de seus microfones.
O “passo a passo” da visita
Todos os programas ao vivo faziam links com direito a visão aérea de novas manifestações, marchas e, claro, “atos de vandalismo”. Nos telejornais de maior destaque, mais da metade do tempo de produção ficou destinada aos atos públicos e, ainda, durante os intervalos comerciais, propagandas eram feitas exaltando e cultuando a programação ao vivo da rede, ressaltando que, a qualquer sinal de fumaça, estaria lá “cobrindo” o fogo.
Mudando a temática, mas não o tema, a visita do santo padre também reformulou a programação da emissora e, principalmente o foco de seus telejornais. Não ponho em questionamento a importância desse evento nem a simbologia religiosa que o compõe, ainda mais quando se calcula a reunião de mais de 3,5 milhões de fiéis em Copacabana ou até a injeção mínima na economia carioca de 1,2 bilhão de reais. De fato, a maior empresa de comunicações do país não deve deixar de potencializar nem transmitir – tão de perto – um evento dessa magnitude.
Desde a chegada do papa Francisco ao Brasil, a emissora já apresentava uma grande equipe de repórteres, tradutores e teólogos para veicular e explicar o “passo a passo” da visita do religioso ao país. Na quase totalidade dos comerciais estava sempre presente espaço destinado a um plantão (com direito a vinhetas) mostrando acontecimentos ao vivo.
O direito de conhecer
Olhando mais detidamente sobre um produto jornalístico de grande abrangência da emissora, o de maior repercussão no horário da tarde, o jornal Hoje, mostrou uma edição especial sobre a visita do papa no último sábado (27/7). Em aproximadamente 30 minutos de produção do telejornal, o primeiro bloco teve 15 minutos só destinados aos acontecimentos alusivos à sexta-feira, quando havia sido encenada na orla de Copacabana a Via Sacra.
A mudança de assunto muda no mesmo bloco para a previsão do tempo, mas em especial para o Rio de Janeiro. Nos próximos blocos são feitas as chamadas sobre o Cristo Redentor aberto por 24 horas, sobre o maior número de turistas no Rio e também sobre os acontecimentos seguintes – tudo apresentado por Sandra Annenberg, a partir dos estúdios da emissora em São Paulo, Evaristo Costa, direto da praia de Copacabana, além de uma equipe de repórteres nas areias, junto aos fiéis. Foi uma cobertura magnífica, a visita do papa Francisco em todo(s) o(s) jornal(is) e programação.
Não se questiona a importância e a representatividade da 38ª Jornada Mundial da Juventude (JMJ) no país mais católico do mundo, mas questiona-se, sobretudo, até que ponto se considerou o direito dos demais telespectadores em encontrar e conhecer os demais acontecimentos do país cujo Estado é laico.
Nem diversidade, nem pluralismo
Deve-se atentar para o fato de que existe uma concessão pública, além de haver uma Constituição que assegura ser o Estado brasileiro laico e, portanto, o fato de não se priorizar uma determinada religião. Uma concessão pública, que compõe uma parcela importante da TV aberta brasileira deveria, ao menos, informar e não “exclusivamente” fazer cobertura completa e integral da JMJ. Isso ofenderia gravemente a lei e a cidadania de quem não é representado pela religião católica. Ademais, pergunta-se: quando vemos espaços assim destinados aos cultos afrodescendentes e aos protestantes?
É claro que, fazendo parte de um monopólio midiático já fincado na história do país, o espaço da Rede Globo que seria público sempre foi administrado por um grupo privado, com interesses e objetivos comercias e públicos já definidos; talvez esse seja o diferencial mercadológico buscado pela Rede. Mas, até quando esse tipo de informação continuará extrapolando e “fazendo os telespectadores engoli-la goela abaixo”?
Esse tipo de postura afeta diretamente a diversidade informativa e cultural e representa a negação do pluralismo brasileiro, porquanto influi sobre a garantia constitucional da liberdade de expressão e os direitos democráticos no país. Necessita-se construir e prezar pela manutenção de um país de todos, não somente de maioria católica.
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Reynaldo Carilo Carvalho Netto é graduado em Comunicação Social, Rádio e TV