Foi extraordinária a repercussão do programa Roda Viva, da TV Cultura (5/8, ver aqui), com os dois líderes desse projeto Ninja, Pablo Capilé e Bruno Torturra. Conduzido pelo âncora Mario Sergio Conti, o debate contou com a participação de Suzana Singer, ombudsman da Folha de S. Paulo; Alberto Dines, do Observatório da Imprensa; Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicações da USP e colunista do Estadão; Wilson Moherdaui, do jornal Informática Hoje; e Caio Túlio Costa, jornalista professor da ESPM.
Em minha avaliação, o programa foi excelente, como jornalismo de TV. Diferentemente, a maioria dos críticos que escreveram sobre esse Roda Viva me pareceu mais preocupada em alfinetar os entrevistadores que dele participaram, por razões puramente pessoais ou ideológicas, ou pelo pecado de representarem “o velho modelo do jornalismo industrial”.
Ninja é o acrônimo de “Narrativas Independentes Jornalismo e Ação”, que já diz muita coisa sobre o projeto. O desempenho da dupla Capilé-Torturra no programa foi extraordinário. Articulados, eles tinham todas as definições na ponta da língua. Só tiveram alguma dificuldade em explicar o complexo modelo de sustentação econômica realizada por meio de uma rede de empreendimentos chamada Casa Fora do Eixo.
Confesso que senti muita dificuldade em aceitar a ardorosa defesa feita por Capilé e Torturra de “políticas públicas” de comunicações, complementada com generosos patrocínios de empresas estatais, sem que isso, como dizem os fundadores do Ninja, comprometa a isenção jornalística do grupo.
Surpreende-me, no entanto, que essa mídia underground tenha despertado tanto entusiasmo em alguns colegas, como Luís Nassif, para quem o novo movimento é “o futuro explodindo o velho”. Sinceramente, achar que essa forma alternativa de mídia seja algo parecido como o modelo do jornalismo do futuro soa como delírio ideológico. Ou confusão de desejo com a realidade, como wishfull thinking.
Em seu blog, Luís Nassif vibrou como um fã juvenil, ao resenhar as declarações de Capilé e Torturra, sobre “o trabalho em rede”, os “conceitos contemporâneos” ou ainda coisas mais pernósticas como o “mosaico de múltiplas parcialidades que refletem brilhantemente as formas de montagem de consensos em ambientes democráticos não oligopolizados”. Ufa!
Curiosamente, nenhum dos jornalistas que aplaudem o Ninja de forma entusiástica menciona ou parece concordar com a dura condenação feita por Eugênio Bucci, no mesmo Roda Viva, da “escandalosa e maciça participação publicitária do governo brasileiro na mídia”. Esse patrocínio publicitário governamental tem sido generoso até com alguns blogueiros chapas-brancas, nos últimos 10 anos. Mas, talvez, seja mera coincidência.
Capilé e Torturra só não foram mais incisivos ou explícitos na condenação dos vândalos que destroem de forma selvagem bancas de jornais, lojas, bancos e bens públicos, como se todo anarquista aprovasse essa estratégia. Capilé buscou até justificar o vandalismo, como uma reação natural à violência do Estado contra esses jovens pobres.
Entender a economia de sustentação do Mídia Ninja não é coisa fácil. No entanto, por mais pontos obscuros que tenham ficado sobre o “modelo institucional e de negócios” e sua vinculação ideológica com o PT, considero o projeto uma experiência inovadora, com características interessantes e como exemplo concreto do que os especialistas chamam de rede viral ou neural.
Comunicações virais
Para maior clareza de meu pensamento, acho necessário relembrar um pouco mais esse conceito de comunicações virais, as partir das ideias originais do professor Andrew Lippman, do MIT (Massachusetts Institute of Technology). Para Lippman, comunicações virais “são aquelas guiadas apenas pela vontade do cidadão, sem barreiras regulamentares ou concessões, que se espalham como vírus e se difundem pelo mundo como uma fantástica epidemia benigna, nas mãos de cada usuário”.
Numa entrevista que me concedeu em 2005, o professor do MIT explicava:
“As comunicações virais estão criando redes, construções ágeis, escalares e sistemas colaborativos cujo crescimento não pode ser controlado. São formas de serviços e aplicações que utilizam o mínimo de potência e a máxima habilidade para intercomunicar com arquiteturas também virais, movimentando a inteligência do tronco para as folhas, que inclui todos os tipos de mecanismos básicos sem fio – wireless ou via rádio – bem como chips e aplicações embutidas até nos objetos triviais da vida diária, como roupas, coleiras de cães ou mobília.”
O mundo tem tido nos últimos anos grande número de experiências inovadoras baseadas na internet e na mobilidade do celular. Em âmbito global, o número de internautas já se aproxima de 3 bilhões, enquanto o de celulares em serviço já supera os 6,5 bilhões, para uma população mundial de 7,1 bilhões de habitantes. E é bom lembrar que o número de usuários do Facebook já se aproxima de 1,2 bilhão e que 1,5 bilhão de pessoas consultam o Google a cada dia.
E no Brasil, ocorre uma verdadeira revolução na infraestrutura de comunicações, ao longo dos últimos 15 anos. Nesse período, o número de telefones cresceu mais de 1.000%, ao saltar de 24,5 milhões para os atuais 340 milhões. Em 1998, com a velha Telebrás, o telefone era um privilégio elitista: só 14 em cada 100 cidadãos dispunham de uma linha. Hoje são 140 telefones por 100 habitantes, quer dizer, há mais telefones do que gente.
Dois dados são essenciais para a existência de experiências inovadoras como o Ninja: o Brasil contar hoje com mais de 110 milhões de internautas e uma rede de 265 milhões de celulares em serviço. A mobilidade se torna um fenômeno de massa, que envolve celulares, smartphones, tablets e laptops que levam a informação a qualquer lugar, a qualquer hora.
É claro que a universalização das telecomunicações alcançada é puramente estatística, pois ainda existem de 30 a 40 milhões de brasileiros que não dispõem de nenhuma forma de telecomunicações – como ainda não contam com saneamento básico ou de escova de dentes.
Sinergia de quatro forças
Se quisermos aprofundar um pouco mais as bases e requisitos tecnológicos para a existência do Ninja é preciso lembrar que essa experiência é um exemplo concreto de comunicação viral, como ocorre em centenas de segmentos da internet.
Na visão do Grupo Gartner, as profundas transformações das comunicações e da economia neste começo de século 21 resultam, acima de tudo, da ação conjunta de quatro poderosas forças tecnológicas: mobilidade, computação em nuvem, redes sociais e internet (incluindo essa massa crescente de informações definida pelo jargão Big Data).
Em síntese, esse nexus das forças quebra todos os paradigmas da comunicação e do modelo econômico do jornalismo industrial do passado.
A era de mil experimentos
Parece-me totalmente descabido, entretanto, considerar o Mídia Ninja um modelo para o futuro do jornalismo – quando muitas outras formas de jornalismo nascem e evoluem, diante de nossos olhos. Quem poderia prever uma Amazon há 20 anos? Ou o Google, em 1998, data de sua fundação? Ou projetos colaborativos quase utópicos, como a Wikipedia, nascida em 2001?
Quem poderia imaginar que o número de estudantes de e-learning que cursam universidades virtuais no mundo pudesse chegar neste ano de 2013 a mais de 100 milhões? E essa população poderá dobrar até 2020, segundo estimam os cientistas do Horizon Project. Quem, há apenas 15 anos, poderia supor a relevância que poderiam ter as redes sociais – como o Facebook, o Twitter, o YouTube ou sua matriz, o Google, com mais de 2 trilhões de páginas? Tudo isso, no entanto, faz parte de nossa vida cotidiana.
É claro que o novo jornalismo pós-industrial – muito mais democrático, aberto e viral – poderá prestar grandes serviços ao cidadão e à sociedade, na defesa dos direitos individuais, na denúncia de corrupção, na derrubada de ditaduras em todos os cantos do mundo e no combate cotidiano a todos os desvios governamentais e de grandes corporações.
A grande tendência desse jornalismo digital nascente, entretanto, é tornar-se muito mais segmentado, fragmentado, em especial, com o desaparecimento dos grandes veículos de comunicações de massa que viveram sua era de ouro ao longo do século 20.
Nesse novo cenário jornalístico pós-industrial, o Ninja será, na melhor das hipóteses, uma das centenas ou milhares de nichos, de segmentos, pioneiros e importantes. Essa é a minha conclusão.
Mais uma utopia
Comparo o Mídia Ninja às diversas utopias que o mundo já criou. O projeto jornalístico é, realmente, inovador. Mas, como acontece com outras utopias, por mais admiráveis e criativas que sejam, elas nem sempre têm futuro. E cito alguns exemplos: o Esperanto como língua universal; o cooperativismo, como alternativa à economia tradicional; o socialismo utópico de Saint-Simon, Owen ou Proudhon; o Greenpeace, como movimento global de luta contra a destruição do ambiente; o Wikileaks, como ousada denúncia mundial de documentos secretos.
Tive um professor de línguas na USP, nos distantes anos 1960, que acreditava firmemente que o mundo conquistaria o entendimento e a paz com a introdução global do Esperanto, aliás, um idioma artificial perfeito, racional, com apenas 16 regras gramaticais. Também acho o Esperanto uma língua maravilhosa, embora não creio que possa trazer a paz mundial. Aprendi rudimentos dessa língua universal com minha mãe, apaixonada por outras utopias: pacifista, alimentação orgânica e vegetariana, naturismo, cooperativismo e, na educação, a Pedagogia Waldorf, do suíço Rudolf Steiner. Como veem, nasci e cresci rodeado de utopias.
Uma das funções mais importantes da utopia é servir de contraponto ou um raio de luz e de esperança, diante dos maiores problemas da realidade em que vivemos. Imaginem o que seria da humanidade se as novas gerações não tivessem sonhos utópicos.
Não tenho a menor dúvida de que o Ninja é uma experiência nova e interessante. Seu engajamento político-ideológico, entretanto, pode tornar-se um obstáculo ao jornalismo novo e democrático que ele se propõe construir. Por tudo isso, o Ninja não é o futuro – apenas um desenho experimental dos milhares de futuros possíveis. Esse é o seu grande valor.
O jornalismo pós-industrial que está sendo cozido no caldeirão de experiências em todo o mundo, em suas múltiplas formas, será, acima de tudo, resultado das mudanças tecnológicas dramáticas que o mundo tem vivido nos últimos 40 anos. E não pensem que esse poder da tecnologia seja uma visão pessoal distorcida de quem cobre esse setor na mídia, há quase meio século, como é o meu caso.
Visão antropológica
Minha visão do papel da tecnologia se apoia na antropologia cultural, que reconhece o papel decisivo dos instrumentos ou ferramentas que mudam o homem, como resultado de sua ação sobre o meio, que criam e modificam sua cultura e revolucionam sua economia. A humanização do Pithecanthropus erectus começa com sílex, o arco e a flecha. E prossegue com a roda, o fogo e o arado. E prossegue nos milênios seguintes.
Permitam-me relembrar um pouco mais nessa linha. No final da Idade Média, as tecnologias revolucionárias eram a bússola, o astrolábio, a caravela, a pólvora, o papel e a imprensa. Sem elas, associadas às mudanças da economia no final da Idade Média, o mundo não experimentaria transformações tão profundas quanto as Grandes Navegações, o Renascimento, a Reforma, a Contra-Reforma e o próprio Iluminismo.
E mais um exemplo que nos é muito mais familiar. Já no final do século 19, em 1886, Ottmar Mergenthaler revoluciona a imprensa ao inventar a linotipo, sem a qual o jornal impresso não teria alcançado as tiragens gigantescas do jornalismo industrial no século 20.
Por maior que seja a rejeição à tecnologia, manifestada frequentemente por intelectuais e jornalistas, afirmo-lhes que é impossível entender as transformações ocorridas antes, durante e após a Revolução Industrial sem levar em conta o poder de transformação de ferramentas tecnológicas, como a máquina a vapor, o telégrafo, o motor a petróleo, o telefone, a eletricidade, o rádio, a televisão e, já na fase Pós-Industrial, na segunda metade do século 20, o computador, os satélites de comunicações, fibra óptica, celular, a internet.
As transformações nem sempre são as que mais desejamos. Dou um exemplo pessoal: eu nunca desejaria o desaparecimento do livro impresso em papel. No entanto, ele está condenado a ser substituído pelo livro digital, não importa se em 10, 20 ou 30 anos. Mas, inapelavelmente. Por isso, já tento conviver com um e-reader Kindle HD (ah, da Amazon), que já armazena mais mil livros digitais. E, creiam, o e-reader tem muitas vantagens sobre o papel.
Não é preciso ser futurologista para prever para os jornais e revistas impressas, o mesmo destino implacável da digitalização. Essa quebra de paradigmas é disruptiva, pois inviabiliza não apenas o velho modelo industrial, mas, em especial, o modelo de negócios do jornalismo industrial.
Alguém tem dúvida?
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Ethevaldo Siqueira é jornalista especializado em tecnologias digitais, editor do portal www.telequest.com.br e comentarista da Rádio CBN (seção Mundo Digital)