A revista Troppo circula aos domingos encartada em O Liberal. Embora seja editada por Delta Publicidade, a empresa responsável pelo jornal, ela é “ligada ao setor de Marketing das ORM”, as Organizações Romulo Maiorana, conforme atesta o expediente da publicação. Mensagem mais explícita não pode haver: o que prevalece na revista é a operação de compra e venda.
Sabe-se que nem todas as matérias pagas que saem na imprensa são aquelas inseridas sob a advertência de “informe publicitário”. O aviso é para o leitor distinguir o que é iniciativa da redação e o que pertence ao departamento comercial, separando o joio do trigo.
Como as emissoras de televisão e mesmo de rádio, os jornais também fazem o seu merchandising, através do qual sonegam ao público a condição de publicidade do que publicam sob a aparência de matéria redacional. O “chen”, expressão do jargão interno, costuma ser feito pela direção da empresa. Mas sempre sobra algum espaço para o profissional mais comercial faturar também o seu dinheirinho extra, se o patrão aprova a partilha ou se dela não tem conhecimento. Em ambas as hipóteses, quem raramente sabe que está comprando gato por lebre é o leitor.
Se é que existe uma empresa jornalística que já tenha se permitido registrar no expediente da publicação que sua principal finalidade é servir ao faturamento comercial, nenhuma chegou à desfaçatez do grupo Liberal na sua revista dominical: de mandar o cliente se entender diretamente com o setor de marketing, que baixará sobre a redação com o prato feito, seja qual for a sua apresentação. Os jornalistas mesmo não poderão interferir sobre esse material recomendado. É caixa preta.
Certamente foi por essa circunstância que a Troppo enfrentou recentemente sua maior crise. Sua editora, Rejane Barros, e uma das suas principais colunistas, Alda Dantas, deixaram a publicação e se mudaram para uma nova revista, criada especialmente para abrigá-las no concorrente feroz, o Diário do Pará.
Imóveis encalhados
Os ambientes de fofocas da cidade foram inundados por versões e interpretações sobre a mudança súbita e radical. Todos os enredos, mesmo os mais generosos, amparados em alguma dissidência editorial, passavam pelo inevitável desentendimento comercial. Além de receber os salários por seu material redacional (se é que recebiam mesmo), as duas jornalistas agiam como corretoras de publicidade, tanto em suas próprias colunas assinadas quanto em outros espaços da revista.
Nessas circunstâncias, raros dos muitos elogios que faziam podiam ser considerados desinteressados, risonhos e francos. Uma leitura atenta e profissional dos textos identifica sem dificuldades o que passou antes pelo “setor de Marketing” e o que foi pura inspiração de propósito informativo. Uma relação evidentemente desigual em favor da primeira hipótese.
Por efeito gravitacional, o resultante desse desequilíbrio é que os personagens das notas publicadas nas colunas são quase sempre pessoas agradáveis, inteligentes, bonitas, inventivas, charmosas e oferecem produtos de primeira, quando se dedicam ao rentável gênero de compra e venda de mercadorias. O leitor, querendo ser mais um colunável, que trate de se aproximar da patota. Quem fica fora dessa igrejinha está condenado ao quinto dos infernos, claro. Não é gente boa.
Para manter essa via expressa de faturamento, prestígio e notoriedade, nada como afagar o desmedido ego dos patrõezinhos, que costumam acreditar nas massagens hiperbólicas das colunas, esquecidos da sua natureza comprometida, viciada. Mas há um dia em que a casa cai e volta a ser nítida a diferença entre empregado e patrão. Aí o boss (ou bofe, conforme as circunstâncias) retoma o seu poder e o funcionário vai cantar em outra freguesia seu canto dodecafônico.
Foi o que aconteceu. Logo as exaltações aos lindos Maiorana foi substituída pelos louvores aos talentosos Barbalho. Mutante o cenário, mutantes os personagens. Raros conseguem ser clicados por uma e outra empresa. Em geral, só aqueles que comparecem ao caixa dos veículos com seus anúncios e “chens”, cuja tabela é de causar inveja à imprensa do Rio e São Paulo (embora, ressalve-se, raramente os preços são definidos pela assustadora tabela;os descontos chegam a ser bestiais, como diria um genuíno comerciante luso).
A nova atração do Diário, o caderno “Toda”, que estreou no final de maio, não chegou à tosca sinceridade do adversário: sua edição é de responsabilidade partilhada entre o departamento comercial do jornal e a Norte Comunicação. Na sua reestreia, Rejane Barros não deixou de assinalar que estreara no mesmo Diário 20 anos antes. Conseguiu ser readmitida na casa dos Barbalho depois de 12 anos na morada dos Maiorana, o que provavelmente não aconteceria se o rumo fosse inverso.
Garantiu aos seus leitores que manterá sempre seu “humorácido”, dentro da sua mania neológica rudimentar, esperando – um tanto humildemente – que todos “continuem lendo as muitas besteiras que escrevo”. Não deixou de jogar confetes sobre o Diário, “o mais premiado jornal do Norte”. Não era, evidentemente, sua opinião na véspera.
O mais novo encarte se juntaria a outros que superpovoam as edições dominicais dos três jornais diários de Belém (na companhia do Amazônia, dos Maiorana) com entretenimento, futilidade e marketing. Os dois jornais devem ser os que mais possuem colunistas sociais na imprensa mundial.
Nenhum motivo para reclamação: é um acréscimo ao miolo das publicações, um plus, conforme a linguagem do marketing predominante. Lê quem quer. Quem não quer, descarta. Um leitor exigente que se dá a esse exercício aos domingos descobre que o que restou para realmente ler e aproveitar constitui volume bem menor do que a quantidade de papel jogada fora.
É nesse momento que a voz do cidadão e consumidor devia ser ouvida. Na espinha dorsal que constitui a parte verdadeiramente editorial da publicação, o espaço é ocupado também por matéria promocional da própria empresa jornalística. No caso do Diário, para encaminhar o leitor para lançamentos feitos com o propósito de atrair mais público, embora, às vezes, de forma bizarra – como receitas de culinária, fascículos de coleções, peças para montar e outros penduricalhos e quinquilharias.
Já O Liberal, além de promover suas criações próprias, reserva páginas e páginas para negócios paralelos dos Maiorana, especialmente do seu principal executivo, Romulo Maiorana Júnior. Ele bem que podia requisitar para si um Guiness: é o empreendedor imobiliário que mais anuncia na imprensa.
Há três anos um prédio da sua incorporadora, que homenageia sua avó, Angelina, é anunciado sem que consiga vender todos os seus apartamentos. O prédio só agora está sendo levantado, mas ainda tem vagas não preenchidas. Atingiu apenas metade das lajes previstas.
Padrão destoante
Carreira mais festiva tem o novo empreendimento de RM Júnior, uma torre enorme, o Maiorana Towers One, apregoada em página dupla, aos domingos, e simples, nos dias de semana, sem que pareça corresponder a tanta promoção de venda (os compradores em potencial são gatos escaldados pela mística de que os Maiorana não são exatamente expedidos na quitação dos débitos, enquanto são terríveis na cobrança dos créditos).
Também ganha vastos espaços publicitários o hotel Radisson Maiorana, com o mesmo resultado.
Nenhum concorrente pode sequer sonhar em dispor de tantos anúncios, mesmo porque, se tivesse que pagar os seus, a Roma Incorporadora já teria quebrado. Trata-se de permuta graciosa, que não entra em contabilidade alguma.
Nenhum construtor ou incorporador se arvora a reclamar da concorrência desleal e ruinosa, por temer as represálias que os donos do jornal costumam adotar contra os que os contrariam. Leitor algum recorreu ao Procon para reclamar do produto que adquire, sob a promessa de se tornar bem informado. Em algumas edições semanais, os anúncios da “casa” podem ocupar um terço das páginas do jornal (excetuados os classificados, onde também pulula o marketing da empresa), num evidente abuso da boa fé de quem compra induzido pela autopromoção dos veículos.
O Diário do Pará passou semanas a se elogiar pelo prêmio internacional que recebeu, o INMA Awards 2013, sintomaticamente, mais por suas peças de marketing do que pelo conteúdo editorial das suas páginas. A honraria lhe permitiu reagir à mesma autolouvação do concorrente, sempre que consegue bicar conquista assemelhada.
A má fé se torna explícita quando o jornal recorre ao Ibope para alardear a liderança do mercado, com 66% da leitura de jornais. O jornal dos Barbalho é filiado ao IVC (Instituto Verificador de Circulação), a mais celebrada e acreditada fonte de informações sobre a vendagem das publicações impressas no Brasil. Nunca o Diário publicou um único dos boletins que o IVC emite durante o ano inteiro. Prefere lançar mão do Ibope, especializado em medir audiência de rádio e televisão, não a circulação paga de jornais e revistas, competência do IVC.
O instituto cobra caro dos seus afiliados, mas o Diário não se vale dessa fonte, que lhe daria credibilidade e prestígio. O Liberal sempre citava os dados do IVC na sua propaganda, até que a auditagem do instituto flagrou uma grosseira fraude praticada pelo jornal, que aumentava artificialmente a sua tiragem. A falsa vendagem chegava a corresponder a 100% a mais do que era declarado. O Liberal teve que se desfiliar na véspera de uma nova auditagem, que o desmoralizaria de vez. Foi a primeira vez, em meio século, que o IVC perdeu um cliente dessa forma: através da fuga.
O Diário aproveitou para se tornar o único jornal paraense vinculado ao IVC. Prometeu divulgar seus dados, mas esqueceu da promessa. Romulo Maiorana Jr. assumiu o compromisso com seus funcionários, numa reunião de fim de ano, de voltar ao IVC. O tempo passou e nada disso aconteceu. A conclusão a tirar desse comportamento é que ambos os grupos não podem se valer da companhia honrosa do IVC por uma circunstância: sua vendagem está caindo a cada nova verificação do instituto.
Por observação empírica, direta, deduz-se que o jornal dos Barbalho continua à frente dos jornais dos Maiorana individualmente. Em conjunto, O Liberal e o Amazônia superam o concorrente, talvez por margem mínima. Mas nem isso os Maiorana poderiam comemorar: o segundo, que é jornal muito mais novo (tem apenas 15 anos contra 67 do primeiro), está vendendo mais. Vende mais, porém fatura menos, o que se explica pelo peso da publicidade, muito superior em O Liberal, que, no entanto, cai pelas tabelas.
Esse dilema resultou de má orientação mercadológica. No Amazônia mandam apenas os dois Maiorana homens, sem a interferência das cinco irmãs. O problema é que, por menos da metade do preço do jornal mais antigo, o leitor tem o essencial do jornal mais caro e alguns adicionais ao gosto popular na publicação mais nova.
O modelo era para concorrer diretamente com o Diário, mais barato e de embocadura sensacionalista (combinada com atrativos para a classe média, na forma de artigos reproduzidos da grande imprensa nacional). Mas acabou se virando contra o irmão mais velho, tomando-lhe público, sem encorpar publicitariamente. O Amazônia só chegaria a um ponto de nivelamento rentável se vendesse mais. Tudo sugere que vende bem menos do que o Diário. mas já deve ter ultrapassado O Liberal.
O impasse, de difícil resolução, está criado. O Amazônia deve dar prejuízo porque sua receita de anúncios não garante a manutenção do seu preço baixo (20 centavos a menos do que o Diário nos dias de semana e empate aos domingos, quando perde mais em vendagem para o concorrente). Deveria ser extinto, hipótese que já esteve em cogitação pelos seus donos. Hoje, suprimi-lo significaria perder ainda mais leitores (além de prestígio). Mas ele não atrai compradores para o irmão mais velho nem este consegue lhe repassar seus anúncios.
Seguramente os impressos devem estar dando prejuízo para os Maiorana. O rombo, que não deve ser pequeno, pode estar sendo coberto por transferências da TV Liberal. Partes dessas remessas de dinheiro devem estar sendo feitas por algum caixa 2. Denotando lucro maior, atrairiam a participação da TV Globo, que comanda a emissora de televisão dos Maiorana. E provocariam maior preocupação com a saúde financeira da afiliada, que já dá muitas dores de cabeça aos executivos da Globo, constantemente convocados a prestar uma ajuda (e fiscalização) na sua estratégica parceira (principalmente em função da ameaça, agora menor, da Rede Record, do bispo Edir Macedo).
Se esse é o pano de fundo (subterrâneo) da imprensa paraense, por que todos tanto a temem, como não são temidas as maiores publicações nacionais, de influência sem paralelo com jornais, rádios e televisões da terra?
A resposta deve ser buscada no temperamento acomodatício e medroso da elite do Estado e nos meios coercitivos, quase sempre resvalando pela chantagem, dos veículos de comunicação. Eles se valem mais do seu poder paralelo do que da consistência das suas publicações. Sua qualidade guarda algum paralelo com outras publicações pelo nível de sua impressão, do papel que utilizam e mesmo do seu marketing, que realmente faz o seu serviço (tão bem que pulou à frente das redações, notoriamente encolhidas e desfavorecidas). No mais, destoam de um padrão de jornalismo que tenta resistir à concorrência das outras mídias, sobretudo da que circula pela rede mundial de computadores.
Puxão de orelha
O que dá mais força aos dois principais grupos de comunicação do Pará diante da sociedade é o poder político que utilizam para influenciar ou constranger tanto os adversários e inimigos quanto os próprios aliados e clientes. Um corretor de anúncios recomenda aos seus clientes programar os dois veículos, sem distinção, para não ter problemas, mesmo quando o anunciante manifesta preferência por um deles e apesar de esse profissional ser vinculado ao grupo Barbalho. Com essa atitude, o próprio programador quer se preservar de aborrecimentos e problemas que possam prejudicar seu faturamento.
Os leitores mais atentos dos jornais podem medir a extensão do que eles são capazes pelos ataques e contrataques que fazem quando suas divergências se agravam. As campanhas só cessam quando chegam a um ponto tal que acarretam o desgaste geral, na fronteira da autodestruição. Segue-se uma trégua, que será interrompida quando novamente os interesses colidirem. Aí voltarão a usar a munição que acumularam.
O exemplo clássico é a campanha que o grupo Liberal desencadeou contra a antiga Companhia Vale do Rio Doce, 10 anos atrás. Um editorial contra a empresa ocupou toda a primeira página do jornal, algo inédito nos anais do jornalismo mundial. Mas a mineradora se tornou a quintessência da corporação perfeita tão logo voltou a anunciar nos veículos das Organizações Romulo Maiorana, fazendo-lhes as vontades e caprichos. Nenhuma explicação foi dada ao distinto público sobre a repentiva e completa mudança,
Quando contribuía para o caixa do grupo, o então prefeito de Belém, Duciomar Costa, era tratado a pão de ló. Para se credenciar, quebrou a diretriz de dar nomes ligados à guerra do Paraguai às ruas e avenidas do Marco, substituindo a 25 de Setembro por Romulo Maiorana, o pai. Mal saiu da prefeitura, tornou-se uma Geni do grupo Liberal, que antes o incensava.
A guerra de guerrilha travada entre o grupo Maiorana e os Barbalho, que se prolonga há muitos anos sem que a capacidade de destruição de um seja suficiente para acabar com o adversário, tem erodido as imagens das duas partes e revelado o que está por trás das aparências de defensores das causas públicas: um balcão de negócios instalado dos dois lados do boque Rodrigues Alves, no bairro do Marco.
Viciados pela prática nociva que adotaram, os dois grupos de comunicação se esquecem de que fora dos seus domínios há vida inteligente e há instituições, ainda que precárias. Quando publicou a foto de um hotel de Honduras como se fossem da Santa Casa de Misericórdia, o Diário do Pará se comprometeu a apurar o erro e divulgar suas conclusões, prestando contas aos leitores.
Como não fez isso, a justiça puxou sua orelha e determinou-lhe que fizesse o que devia ter sido iniciativa espontânea. O jornal reagiu com uma nota na coluna “Repórter Diário”, atribuindo a decisão a uma pressão do governo, autor da ação. Pode ter sido Mas teria esvaziado a manobra antecipando-se a ela e honrando sua palavra. Honra, porém, é mercadoria que não está em causa na imprensa grande do Pará.
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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)