Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo velho, mas com cabeça de 13 anos

O jornalismo no Brasil tem passado por tristes e severas perturbações nos últimos tempos e isso pode ser atestado pelas recorrentes demissões de profissionais de imprensa realizadas por muitos veículos nos últimos meses. É difícil achar uma empresa jornalística que tenha saído totalmente incólume do famigerado “passaralho” nas redações. Por mais choque que causem na categoria, a cada dia fica menos difícil se surpreender com essas perturbações.

Ok, pode ser que a situação econômica nacional (e global) esteja frágil, forçando as pessoas a consumir menos notícias pagas, a buscar mais conteúdo gratuito. Certo, certo, pode ser que as redações tenham que se adaptar a novos modelos de negócios e estruturas de custo distintas da época em que Thomas James Abercrombie comprou um pequeno avião com dinheiro da National Geographic, pois não havia transporte em tempo hábil. É compreensível também que as tecnologias novas permitam um sistema de transmissão de notícias que exija menos profissionais.

Convenhamos, entretanto, que a qualidade do conteúdo tem um grande peso nessas perturbações. O mais recente relatório “The State of News Media”, do Pew Research Center, que inclusive foi destaque no Observatório da Imprensa, já havia destacado os impactos dos cortes e da queda de credibilidade em certos ramos jornalísticos.

A matéria sobre suspeito de parricídio

Não vale discutir que Folha, Estadão, Globo (lato sensu), Grupo Abril, Record etc. tenham conteúdo jornalístico de qualidade, matérias que importam à sociedade de várias formas, de críticas culinárias e esportes até bastidores importantes sobre os meandros da política nacional, tão contestada em tempos pós e até mesmo pré-protestos. É claro que eles têm bom conteúdo jornalístico.

Ao mesmo tempo, a necessidade de conteúdo dinâmico e que apela por volume de audiência – liderada pelo (mas não restrita ao) segmento online, que goza de menos controle de edição e de seletividade noticiosa – resulta em um show de aberrações jornalísticas infindáveis, como as editorias de “bizarrices” dos principais portais, com suas matérias que atraem cliques dos internautas mas causam baixo impacto (o que interessa em “Fortão tem dificuldades para abrir garrafa d’água”?), e de celebridades, nas quais uma personalidade não pode coçar o nariz que já tem até chamada na homepage (o que interessa se a “Luana Piovani quase encontra o Dado Dolabella no Leblon”?). Um segredo das redações, obviamente não alardeado: é que repórteres, redatores e até estagiários muito frequentemente publicam diretamente o conteúdo nos sites noticiosos, sem passar por edição. Muitas vezes, apenas um par de olhos por matéria. Errou? Ops, corrige rapidinho, ninguém viu. As correções ganham quase nenhum destaque ou transparência. Mas são matérias de baixo impacto, não? Nem são.

Às vezes, a coisa fica mais séria. Às vezes, trata-se da vida de uma criança ou de sua morte e de seus pais. O que motivou este texto – já engasgado em meio a tantos exemplos que acontecem com tamanha frequência que é impossível manter registro – foi uma matéria do site da Folha de S.Paulo em 6 de agosto de 2013. Nela, redator não identificado dizia que o suspeito do parricídio, um menino de apenas 13 anos, “usava imagem de personagem de assassino em videogames em rede social“.

Senso jornalístico

Este texto não precisaria nem continuar. Já dá para prever o estrago. Astutamente, em momento nenhum o redator conecta o videogame violento ao ocorrido, não há atribuição direta, então seria apenas uma curiosidade, uma “matéria de cor” – jargão jornalístico para descrever matérias complementares e de ambientação ao tronco principal. Certo? Nem tanto.

A não atribuição direta entre o fato (no caso, o assassinato) e a ambientação (no caso, o perfil com imagem do videogame violento) é um artifício bastante utilizado por jornalistas, que consideram precisar unir acontecimentos, curiosidades e até rumores o tempo todo sem colocar a própria mão, ou a de suas fontes, no fogo. Frequentemente é o “por que” da matéria. Frases com verbos no futuro do pretérito como “teria feito isso” ou “seria responsável por aquilo” não apenas são comuns como amplamente encorajadas nas redações. Até aí, nada demais. Às vezes é uma forma de linguagem apta para certo momento. É isso? Nem sempre.

Mas quando a vida de um menino de 13 anos (ele também morreu; supostamente teria se matado, segundo a polícia) está no escopo de um website respeitado, que é visitado e compartilhado por milhares de pessoas diariamente, a coisa muda um pouco. Nesse contexto jornalístico, não interessa se o menino foi ou não o autor dos disparos contra sua família. Houve uma postura leviana não apenas do redator, mas de quem deixou aquela “matéria” entrar no ar com essa associação entre o potencial (note-se o termo potencial) assassinato dos pais pelo filho pequeno e um jogo de videogame violento. Não dá para dizer com certeza se essa matéria passou ou não por um editor, mas uma pessoa com bom senso jornalístico jamais teria publicado isso. É a imprensa brasileira sendo a imprensa que ela diz querer combater, reprodutora de declarações e adepta de antigos vícios de pré-conceitos.

Mais apuração

Nem fora comprovado que o menino matara os pais e parentes e depois se matara; houve apenas um policial falando que ele era canhoto e que a arma estava do lado esquerdo dele, mas já começaram a associar o videogame. Mesmo que ele tenha cometido o crime, certamente não foi por causa do jogo – que, inclusive, é de combate estilo medieval sem armas de fogo. Então, na lógica do discurso do jornal, ele deveria apunhalar os pais com uma adaga renascentista. É como se faltasse pouco para associarem um suposto aumento do uso de videogames violentos com crescimento no número de pessoas canhotas.

“O menino utilizava no seu perfil do Facebook a imagem do protagonista da série de videogames chamada Assassin’s Creed. No jogo, que se passa durante o Renascimento, o personagem faz parte de uma seita de assassinos e pretende vingar a morte de seus familiares”, disse a matéria da Folha, sem pudor. Digamos, apenas hipoteticamente, que o filho tivesse matado os parentes atropelando-os com um carro, e que a foto de seu perfil no Facebook fosse um Shelby GT 500 prateado. Qual seria o título dessa matéria? Lembre-se que acidentes viários matam mais pessoas por ano do que parricidas.

A mídia norte-americana conservadora é craque em criticar a “má influência” de certos jogos nas crianças, ao mesmo tempo em que seus canais de TV pagos e abertos passam filmes tão ou mais violentos do que os próprios jogos. Certa vez, o bastião da mídia televisiva conservadora dos EUA, a Fox, malhou com força um jogo de videogame violento no qual um humano poderia ter, dependendo dos desdobramentos da narrativa, relações sexuais não explícitas com uma alienígena, isso vindo do mesmo conglomerado que tem os direitos de venda de filmes como Wolverine, um homem com garras metálicas que rasga tudo pela frente, ou Clube da Luta, considerado como influência para, bem, clubes de luta.

Não se trata de deixar de debater os efeitos do conteúdo violento de entretenimento nas crianças, mas sim, de fazer um jornalismo que preze mais pela apuração e coerência do que pelos “achismos” e pré-conceitos. E, se toda criança que jogasse jogos violentos de videogame saísse matando os pais, talvez o Planeta Terra pudesse ser chamado de Terra do Nunca.

******

Sérgio Spagnuolo é jornalista e mestre em Relações Internacionais e Direitos Humanos