Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A explosão do novo

A entrevista dos representantes dos Ninja ao Roda Viva é mais um capítulo relevante do extraordinário processo de mudanças na sociedade brasileira, impulsionado pelas redes sociais. Foi de deixar a direita indignada e a esquerda perplexa.

Mas, principalmente, foi reveladora da verdadeira ruptura ocorrida no país – na política, na cultura, na mídia – com o advento das redes sociais e de seus pensadores. Reveladora porque a bancada de jornalistas, bem escolhida – com o que de melhor existe na imprensa tradicional –, foi incapaz de entender e explicar o novo ou contrapor argumentos minimamente sólidos à visão de mundo da rapaziada.

O novo é representado pelo trabalho em rede, colaborativo, com formas de produção já identificadas por clássicos modernos, como o espanhol Manuel Castells e pela não compartimentalização de ideias, grupos ou trabalho.

Os dois entrevistados representam esse modelo, Capilé como representante da Casa Fora do Eixo – que trabalha com coletivos culturais – e Bruno Torturra, da Mídia Ninja – que trabalha com coletivos midiáticos. Ambos são portadores do que chamam de “nova narrativa” – uma maneira diferente de pensar, entender e explicar os fenômenos atuais.

Ficou extremamente didático o contraste entre as duas formas de pensamento. No pensamento antigo tudo é compartimentalizado – posições ideológicas, partidos políticos, formas de fazer jornalismo, modo de produção. Na nova narrativa há a explosão de todas as formas de compartimentalização e o estímulo a toda forma de trabalho coletivo, em rede.

Sem entender

A partir daí, as diferenças ficaram gritantes.

Por exemplo:

1. Os jornalistas tradicionais queriam a todo custo enquadrá-los em algum compartimento ideológico, boa forma de desqualifica-los. Chegaram a classificá-los de linha auxiliar do PT. Resposta de Capilé: estamos há dez anos construindo nossa nova narrativa e não seria agora que nos acoplaríamos a organizações com discurso velho. Resposta de Torturra: assinou o manifesto de criação do partido de Marina Silva. E considerou histórica a posição de Fernando Henrique Cardoso em defesa da liberação da maconha.

2. Quiseram, a todo custo, que eles identificassem UM grupo com o qual tivessem mais afinidades. E ambos explicando que, na cultura em rede, relacionam-se com todos os grupos, do partido de Marina ao Movimento do Passe Livre. O apresentador Mario Sergio Conti, em vez de entender essa não-compartimentalização como característica da cultura em rede, acusou-os de estarem tirando o corpo.

3. Os jornalistas tradicionais mostraram a inviabilidade financeira atual do jornalismo e indagaram de que forma pretendia fazer jornalismo sem recursos. Resposta: o jornalismo continua preso ao modo de produção industrial do começo do século 20- e já estamos na era da informação. Proximamente o Mídia Ninja pretende lançar um novo jornal. Já existem 1.500 voluntários dispostos a colaborar.

4. Os jornalistas tradicionais acusaram-nos de defender o movimento Black Boc Brasil – os vândalos que promovem quebradeira – ao abrir espaço para suas declarações. E Torturra deu uma aula impensável, partindo de um jovem para jornalistas experientes: disse não apoiar nenhum dos métodos do grupo, mas seu papel, como jornalista, era entender as razões que os levam a proceder assim.

Em ambos os casos – Casa Fora do Eixo e Midia Ninja – , montaram-se estruturas colaborativas em rede para substituir a figura do intermediário – no caso da música, as gravadoras; no caso da notícia, as empresas de mídia.

Quando a indústria fonográfica entrou em crise, afetou a cadeia produtiva como um todo, os artistas e corpos técnicos que montavam shows e excursões no rastro do lançamento do seus CDs.

As Casas Fora do Eixo surgiram para suprir essa lacuna e acabaram se espalhando por todo o país.

São casas onde moram colaborativamente duas dezenas de pessoas, especializadas em todos os aspectos de shows – cenografia, operadores de som etc. No total são 2.000 pessoas nas Casas Fora do Eixo e 30 mil artistas se beneficiando dos circuitos culturais e dos 300 festivais montados todo ano.

Espalhados por todo o país, permitiram a novos grupos excursionar e montar shows, hospedando-se em cada Casa e contando com o apoio técnico de seus iintegrantes.

Há duas moedas para remunerar o trabalho interno. Uma delas, o real – obtido em shows. Outra, uma moeda interna, da qual cada Casa se credita de acordo com os trabalhos oferecidos às demais. Uma Casa presta um serviço para outra, Fica com um crédito nessa moeda, que poderá utilizar para comprar serviços de outra casa.

Foi praticamente impossível os entrevistadores entenderem essa lógica – já bastante dissecada por Castells. Só conseguiam enxergar o plano de negócio convencional.

Motor do processo

Como um coletivo, a Casa do Núcleo se habilita a editais públicos de apoio à cultura, tanto na área federal como em São Paulo. São valores irrisórios, perto do que se produz efetivamente (e é medido pela moeda interna). Mas bastou para que, no dia seguinte, a Folha a “acusasse” de receber financiamentos públicos, numa flagrante distorção do que foi assistido por milhares de telespectadores.

Outro ponto complexo, denotando profunda compreensão sociológica dos dois entrevistados – e enorme dificuldade de entendimento por parte dos entrevistadores-, foi o conceito de democracia midiática e do que eles chamam de “mosaico” das múltiplas parcialidades”, nos quais as pessoas irão buscar as informações e interagir.

O que eles querem dizer é que não existe a mediação neutra da notícia – como os jornalistas teimaram em defender – nem na mídia tradicional (com a embromação do “ouvir o outro lado”) nem da parte deles. Aí reside o conceito da nova mídia: “as pessoas irão buscar as informações e interagir dentro dessas múltiplas parcialidades”. Ou, como explicou Capilé: “Nova credibilidade do jornalismo não virá através de falsa parcialidade, mas através de múltiplas posições”.

O motor de todo processo de democratização é a ampliação das vozes e dos ruídos. Mas foi impossível os colegas entenderem essa lógica. Ficaram no diapasão de Mario Sergio Conti, o apresentador, sobre “ouvir o outro lado”.

Decididamente, quem tinha o eixo das interpretações eram os jovens questionadores do Fora do Eixo.

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Os obstáculos brasileiros ao aparecimento do novo

Luis Nassif # reproduzido do blog do autor, 12/8/2013; intertítulos do OI

O Brasil sempre enfrentou enormes barreiras para aceitar mudanças de paradigmas. Há uma intolerância exacerbada que quase sempre desagua na fulanização e nos julgamentos pessoais.

É o que está ocorrendo com a discussão que se instaurou sobre a Casa Fora do Eixo e a Mídia Ninja – as duas experiências coletivistas, objetos de um programa Roda Viva, que já comentei aqui.

Nos portais de jornais e nas redes sociais explodiu um amplo processo de desconstrução, brandido à esquerda e à direita, deixando para segundo plano o essencial: a análise e a celebração das novas práticas, dos novos modos de produção abrindo um horizonte até então inimaginável, graças ao conceito de rede social.

É interessante analisar a quebra de paradigma trazida por essas experiências e a razão de terem despertado a ira tanto da esquerda quanto da direita.

A reação da direita deveu-se ao caráter coletivista de ambas as experiências. Nos dois casos, são comunidades trabalhando de forma articulada, em cima de modelos de atuação claros – porém impensáveis para quem só entende o trabalho a partir do modelo de chefia-subordinados-tarefas com horário e funções determinadas.

Para dinossauros da direita, todo trabalho coletivo é socialista e contra os meios de produção e de mercado. Vem daí sua resistência.

Novo modo

A resistência da esquerda é em direção contrária. O grupo é coletivista, sim, mas trabalha de acordo com leis de mercado.

As Casas Fora do Eixo são comunidades espalhadas por todo o país coordenando shows, turnês de grupos, abrindo espaço para artistas de diversas regiões e da periferia.

Conquistaram espaço com sua estrutura de shows, com as formas de divulgação e com a organização, que lhes permite participar de editais públicos.

São vistos por parte da esquerda e dos artistas como exploradores.

De fato, não há nada de mais mercado do que desenvolver uma marca, um modo de produção, uma estrutura de distribuição e de captação de recursos e se beneficiar desses ativos.

Esse é o dado importante, não a análise do caráter, oportunismo, esperteza e outros aspectos pessoais dos seus líderes.

Se as Casas Fora do Eixo representam um novo modo de produzir cultura, a Midia Ninja explora um novo modo de fazer jornalismo, coletivo, tecnicamente imperfeito mas muito mais dinâmico do que o telejornalismo convencional.

O futuro chegou

É praticamente impossível que ambas as formas de produção se tornem hegemônicas – e reside aí outro vício da crítica. “Jamais poderão substituir as formas tradicionais”, e bordões do gênero.

Mas é claro que não. São propostas alternativas válidas e que fazem o contraponto, assim como fazem blogs e portais alternativos.

Essa é a raiz da democracia e do mercado: a criação de novos ambientes que permitem o florescimento de práticas alternativas, algumas das quais poderão ganhar dimensão maior, outras desaparecendo na poeira.

Hoje em dia, no ambiente da Internet e da produção audiovisual vicejam essas formas novas de produção, de parcerias, de sistemas horizontais de produção.

O futuro já chegou no dia a dia dos TICs (Tecnologia da Informação e da Comunicação) e nas experiências mais radicais dos rapazes do Fora de Eixo.

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Luis Nassif é jornalista