Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O espírito do churrasco na laje

Não há nada que o ser humano faça com mais desenvoltura do que rotular as coisas, os outros. Trata-se do esporte mundial por excelência, pois não requer prática nem habilidades especiais; independe de status social, intelectual, número de praticantes, idioma, circunstâncias, enfim, nada mais democrático. A rigor, três ou quatro neurônios, uma pitada de derrisão, felonia a gosto, é o que basta para que o chamado espírito de churrasco na laje, cunhado pelo filósofo, professor e colunista da Folha de S.Paulo, Luiz Felipe Pondé, no seu Guia Politicamente Incorreto da Filosofia, vá se consolidando como a mais emblemática manifestação cultural de nossos tempos. Senão de todos os tempos.

Na surdina ou a quatro ventos, de cunho doméstico ou profissional, turbinados pela hecatombe midiática de nossos tempos, não há o quê ou quem escape do inventário, do escrutínio e crivo alheio, e vice-versa. Não há exagero em dizer que a própria faina jornalística consiste e subsiste em função da reverberação desse ecossistema, no cotejo entre rotuladores e rotulados, na dissecação dos fatos e desdobramentos de ideias. Tarefa, por isso mesmo, sempre questionável, já que sujeita a juízos de valores invariavelmente forjados à luz de interesses obscuros, quando não espúrios, manipulados pelas classes dominantes. Indistintamente. A ponto de já não se poder diferenciar quem é do bem e qual a banda podre.

Que o digam as evidências desse desvio estimado em 500 milhões de reais dos cofres públicos, ao longo de dez anos de governo tucano, no estado de São Paulo, com a manipulação de concorrências relativas a obras da CPTM e do metrô paulistano. Revelações que o governador Alckmin, como de praxe, alegou desconhecer, mas que, pelas provas documentais que já vieram à tona, trocas de e-mails entre as partes envolvidas, parecem cada vez mais irrefutáveis. Falta saber, além do nome dos beneficiados, até que ponto o próprio governador, bem como seus antecessores tucanos, Mario Covas e José Serra, estavam a par do esquema denunciado pela própria Siemens, favorecida pelo arranjo.

Falácias e tergiversações

Exemplo clássico a engrossar o extenso repertório de rapinagem que impera no país, não há rótulos dissuasórios que possam amenizar o malfeito: tudo indica que se trata de roubalheira da grossa. Agora, se os fatos serão apurados com o devido rigor, com a responsabilização dos beneficiados (doa a quem doer) e os valores surrupiados devidamente ressarcidos, o buraco é mais embaixo. Como tanto no que tange à apuração como à prestação de contas, tudo sempre costuma convergir para o manjado jogo de empurra, a perspectiva de punição, além da execração pública, para a qual ninguém liga, possivelmente acabe na pizza de sempre, por conta da frouxidão das leis. À moda e semelhança de filmes anteriores, e que tendem a ficar em cartaz como nas maçantes programações da TV a cabo, que repetem o mesmo filme meses a fio.

Enredo e estado de coisas que mesmo a imprensa se mostra impotente e incapaz de inibir, dada a sua ligação umbilical, se não diretamente com a prática delituosa em si, com seus mentores e afins. Dos mais graduados à vasta rede de corrupção incrustada no poder. Motivo mais do que justificável para o eterno pé atrás da opinião pública em relação ao desempenho bipolar da mídia, sobretudo dos veículos tradicionais, que a despeito do cenário de degradação política e social que resiste aos tempos, continuam sendo vistos com desconfiança e hostilidade.

Por conta disso, é público e notório que se por um lado a imprensa se vê instada a fazer seu trabalho, sua grade de interesses faz com que grande parte do material que vem a público seja distorcido, manipulado, fragmentado, em suma, editado sob normas pré-determinadas. Isso quando os rotuladores profissionais não se encarregam do trabalho sujo, disseminando suposições falaciosas e tergiversações unicamente para tumultuar o ambiente a mando ou a soldo de alçadas superiores. Daí a repulsa que esse tipo de jornalismo engajado vem despertando, a dano não só da profissão como da própria instituição.

Vigiando nossos passos

Mesmo sendo relativamente fácil vislumbrar quem é quem no meio jornalístico, nem isso serve para melhorar a imagem da imprensa. Além do viés conservador e anti-governista dos grupos hegemônicos, rótulo por si só suficientemente desabonador, aparentemente não há como reverter o esvaziamento do formato tradicional junto ao público, que vem aderindo massivamente às novas mídias. E, de fato, chega a ser covardia a competição entre a imprensa formal com os veículos gerados pela internet, de fluxo contínuo e comunicação instantânea, em que a interatividade permite a participação do próprio usuário no desenrolar dos acontecimentos.

E haja rótulos e rábulas de todas as instâncias para não só reduzir tudo ao âmbito de um tribunalzinho inquisitório particular, como para tentar entronizar novos paradigmas que no fundo não passam de experimentos, testes de laboratório e, portanto, ainda embrionários e ineptos a assumir o protagonismo que lhes vem sendo imputado. Muito mais razoável e racional seria encará-las como novas e promissoras ferramentas para o aprimorando da prática jornalística, evitando assim cair na esparrela de propostas cujo suposto vanguardismo e idealismo vai aos poucos sendo desmascarado por seus próprios dissidentes.

Voltando ao ponto de partida, não deixa de ser alarmante a verdadeira compulsão e desvelo com que todos e tudo hoje em dia, estejam cada vez mais sujeitos e expostos ao escrutínio e a bisbilhotagem alheia. Não bastassem os olhares vigilantes da vizinhança e fofoqueiros de plantão, há os programas e câmeras de monitoramento, GPS, rastreadores via celular, enfim, toda uma parafernália tecnológica de ponta para vigiar nossos passos. Bom e necessário por um lado, dada a violência que hoje campeia, mas e o sacrossanto direito a privacidade, como fica ? Como escapar dos rótulos, dos estereótipos de churrasco na laje, com tamanha exposição?

Maniqueísmo arcaico

Desagradável, sem dúvida, sem falar que nem todos esses obstáculos têm conseguido diminuir ou sequer inibir a violência e a roubalheira em geral. Ao contrário, os assaltos e a mortandade continuam batendo recordes, a exemplo dos chamados crimes do colarinho branco, como se pode constatar nos casos diários relatados pela mídia. Que, por sua vez, também não consegue se livrar dos antigos vícios, mesmo sob a vigilância muito mais severa e inclemente encetada pela internet.

Sob certo ângulo, a fartura e variedade de informações poderiam ser vistos como o ponto de partida para a discussão e encaminhamento das medidas saneadoras tão clamadas pela sociedade, como se viu nos recentes manifestos. Poderiam, houvesse uma noção mais clara por onde começar, como viabilizar, e conforme o caso, em que pedaço de carne cortar primeiro. Ainda mais que o alvoroço inicial provocado pela gritaria popular parece ter perdido a força, e sem pressão, a classe política já começa a voltar a tradicional malemolência e as barganhas de sempre.

O mesmo se pode dizer em relação a mídia, de volta a antiga modorra, ao panfletarismo inconsequente, a um criticismo pautado pelo dogmatismo e maniqueísmo arcaico que ainda faz a cabeça da maior parte da elite jornalística e intelectual do país. E se o modo de pensar de nossas melhores cabeças, em tese, não difere muito das ouvidas em churrascos na laje, exceto pelo verniz, quem espera por dias melhores que espere sentado.

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Ivan Berger é jornalista, Santos, SP