Convivi com Luiz Paulo Horta durante exatamente 20 anos, desde quando me mudei da Manchete para O Globo. Eu ainda não era nem balzaquiano, mas já tinha seu nome como canônico dentro da área musical, por suas matérias e críticas no “Jornal do Brasil”. Já vira também alguma foto sua (de papel), ou o avistara em ocasião social, profissional, familiar. Sua figura, para além dos textos, me inspirava grande simpatia, e dela emanava uma honestidade dessas puras, infantis, que se irmanava com a expressão serena, sóbria e regulada por princípios bem fundamentados.
A internet ainda não tinha chegado aos lares, e os celulares mediam 80cm. As pessoas só se aproximavam, mesmo, pessoalmente, o “virtual” ficava nas artes, na televisão (que ainda era de tubo) e no pensamento. Por isto, foi na redação do jornal que, a partir de 1993, falei, de fato, com LPH.
Primeiro, por admiração: ia ao Horta como se vai a um Salomão, oferendar, ansiosamente, como a um Rei ou a um avô (meu avô materno se chamava Salomão), minhas modestas impressões sobre essa ou aquela peça clássica que ouvia por indicação do meu primo, o Arnaldo Dines, de Nova York.
Assim, antes mesmo de conhecer a faceta religiosa do Horta, pude enxergar, através da fruição musical, sua alma generosa. Embora fosse fiel a um gênero instrumental de expressão (a música de concerto ou de câmara), Horta amava, dentro desse espectro, tanto o clássico quanto o popular, tanto a tradição quanto a invenção. Podia-se falar com ele de canto gregoriano mas também de polifonias. Ia-se de Bach a Debussy, de Bartók a Reich, sem grilos. Dizia, é verdade, que Igor Stravinsky, com suas percussões de fogo, lançara as bases do pop-rock, que não eram bem a sua praia.
Mas amava Jobim. Tocava Chiquinha Gonzaga no piano. Certa vez disse que Frédéric Chopin soava jobiniano, como se Jobim tivesse influenciado Chopin nas esferas.
Força de Hermeto
Lembrar-se de gente boa é assim: não tem nuvem no percurso. Apesar disso, uma vez, confesso, me indispus com o Horta, e ganhei bronca sarcástica de um superior:
– Você é a única pessoa do mundo capaz de fazer o Horta sair do sério.
Não que o Horta fosse mal-humorado. Longe disso. Seu sorriso era, e continuará a ser, sua iluminação. Contava piadas. Amava Deus, mas não era “carola”. Sua substância mundana estava ali, por isso era tão bom conversar com ele.
Mais cedo, mais tarde, o papo descambaria para a religião. E sempre que havia algum ponto de vista histórico um pouco diferente sobre, sei lá, Pio XII (o que não é proibido, até Golda Meir escreveu ao controverso Papa uma carta de agradecimentos), apertávamos as mãos e as levávamos ao alto, jubilosamente. E exclamávamos, o judeu e o cristão, o bordão da paz:
– Fechamos com o Concílio Vaticano II!
Nos últimos anos, o Horta mudou, por peso de tempo ou de saúde. A velocidade dos seus passos e a expressão de sua alegria tornaram-se mais moderadas. Assumiu um ar de permanente indagação. O Horta meditava.
Algumas vezes, o sorriso dava lugar a uma compunção. A vida pesa. A glória vem, em momentos fugazes, pela música, pelo amor, pelo prazer, pela religião, ou até pela descrença, mas o peso nunca cessará. Vamos carregando a cruz, a estrela, a lua crescente , o “Om” e as figas.
O Horta sabia carregar o peso do mundo sem escorregar. Nas últimas conversas que tivemos (não nos falávamos com grande frequência, então essas conversas se davam de meses em meses), eu o cobrava de um projeto do qual me contara: uma biografia de Villa-Lobos do tamanho do personagem e da obra. Desde que soube, sempre perguntei:
– E o Villa- Lobos?
– Preciso dar um gás – dizia.
Para Horta, a música era pura transcendência, e essa transcendência podia ser alcançada por qualquer humano, pelo crente mais cego ou pelo ateu mais feroz, pelo burguês e pelo camponês. Toda música, sacra ou pagã, antiga ou moderna, era música.
Tanto que, um dia, O Horta, com certa aflição, veio me falar de Hermeto Pascoal, confessando nunca ter-se aproximado o suficiente do bruxo. Voltou pasmo de um show.
– É uma coisa extraordinária. Uma força da natureza.
De boa paz
A última vez em que o vi foi nos lances de escada entre um e outro andar do Globo. Ele trabalhava no segundo piso, e sua mulher, minha colega Ana Cristina Reis, mudara-se para o primeiro, onde atualmente fico.
O Horta descia e subia a pé este lance para visitá-la ou para combinarem a hora de sair, coisas assim, que só na presença do outro podem-se fazer decentemente.
Mais de uma vez eu os fotografara juntos, numa delas Horta beijara galantemente a mão direita de Ana, posando para a foto. Todos nos alegramos.
O Horta, simples, de boa paz, era extraordinário. Era desses que podiam ter ficado mais tempo com a gente. Perdê-lo soou como aqueles finais de jogo injustos. Como levar um gol aos 49 do segundo tempo.