Xikito Affonso Ferreira é nome de sobejo conhecido nos meios empresariais de vanguarda e na imprensa, com alguns artigos na Folha de S.Paulo, no Estadão e no Observatório da Imprensa. Pois agora, além de empresário e jornalista, afirma-se solidamente como escritor, com a publicação do livro intitulado Estarei Delirando?, subtítulo Memórias de Viagem, com prefácio carinhoso de Antonio Carlos Lima de Noronha.
Seu prenome vem explicado na orelha do livro, pelo próprio autor: “Nasci em Buenos Aires, 1949, de pais brasileiros. A babá portenha calcou-me o ‘Xikito’, daí desisti do Carlos Eduardo que minha mãe havia tomado emprestado a um romance.” Seu pai viajava na condição de funcionário de uma fábrica de equipamentos rodoviários norte-americana, daí a passagem do casal pela capital argentina. “Peripécias de Xikito” talvez fosse título mais adequado a esta obra-prima, sob todos os aspectos, que é o livro, a começar pelo aspecto literário, a autenticidade e fluência do estilo revelada por esse “argentino” com jeito simpático de campineiro.
Seu pai, Afrânio Affonso Ferreira (1916-2000), originário de uma família do Piauí, radicado em Campinas, foi um tipo singular, dotado de forte personalidade. Temperamento espartano e caráter esculpido no granito. Na Bahia, transformou-se em empresário ousado e empreendedor, de larga visão. Tratava em pé de igualdade outros empresários e empregados. Nas reuniões convidava diretores e peões, sentados lado a lado. Fez carreira na fabricação e revenda de máquinas para obras públicas de infraestrutura. Assimilou a cultura de empresas americanas como a Caterpillar, aperfeiçoando a questão do treinamento de operários e incorporando-a em seus empreendimentos.
Na Bahia, Afrânio realizou um prodígio: introduziu nas empresas o sistema de administração compartilhada, conseguindo implantá-la com êxito em terra de coronéis, como já disse alguém. Bahia remota e senhorial, escreve Xikito. Remota, penso eu, não só no sentido geográfico, como mental ou filosófico. Impossível ideias claras e distintas sobre o ser baiano. Por exemplo, a gente baiana é, ao mesmo tempo, a mais festiva e a mais sábia do nosso território. O autor do livro dá a pista ao escrever as maneiras de uma cozinheira baiana, uma entre inúmeras cozinheiras baianas: “Enedina tinha maneiras fidalgas cozinhando ou pitando seu cachimbo na porta do seu quarto, no fundo do terreno.”
Em outras palavras, as “maneiras fidalgas” não se restringem às elites dominantes, elas começam mesmo no povinho, iletrado, humilde, negro ou mulato. O talento baiano específico está na fusão dos contrários, coisa da alquimia no enfoque de um C.G. Jung ou de sua discípula Marie-Louise von Franz, entre outros autores.
Na Bahia, aquelas antinomias acadêmicas da mente ocidental perdem o sentido. Como a oposição e a exclusão entre o fidalgo e o popular, ou entre pecado e virtude, fé e ciência. E também, nessa “terra de coronéis”, a luta de classes, a contraposição irredutível entre capital e trabalho. Sem querer ir muito longe. O livro mais famoso de Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, no emprego daquele sinal gráfico antigo, &, designando a fusão entre duas razões comerciais (“Alves & Cia”) não foi simples capricho do autor, e sim, sua maneira de assinalar a ligação visceral entre a razão da Casa-Grande e a razão da Senzala, ambas no mesmo nível, enlaçando-se e entendendo-se debaixo daquela abominação inaceitável que foi a escravatura.
Somente no ambiente cultural baiano é que Afrânio Affonso Ferreira poderia realizar o prodígio de implantar o modelo que esboçou da administração participativa. Talvez sem saber que propunha nada mais, nada menos, do que a efetivação da doutrina social da Igreja.
O avô materno de Xikito foi talvez o maior pensador católico brasileiro, Alceu Amoroso Lima, o famoso Tristão de Athayde. Seu neto está preparando a biografia que será a mais completa sobre aquele pensador que na década de 50 influiu em larga escala sobre a melhor intelectualidade nacional. Estudante de Filosofia, eu não perdia nenhum artigo de Tristão de Athayde publicado na Folha de S.Paulo. Alceu, discípulo do pensador católico Jacques Maritain e impregnado de literatura francesa, foi pródigo em definições curtas, mas lapidares e brilhantes, como esta que cunhou da doutrina social da Igreja: “A propriedade pertence ao indivíduo, mas seu uso é social.” Em suma, a síntese pacífica, dialética, mas sem luta de classes, entre capital e trabalho.
Afrânio Affonso Ferreira era muito inteligente, mas não um intelectual. Homem de ação, derivava da prática suas teorias. Pois sem se aprofundar nas lições do sogro, guiado apenas pela clara intuição dos justos, lançou na Bahia o esboço mais aproximado de que temos notícia da doutrina social católica.
II
“Há em minha família um impulso viajador.” Eis a frase inicial do livro de Xikito, abrindo aos nossos olhos o vasto panorama de suas aventuras delirantes pelos espaços do mundo, por lugares “aonde ninguém queria ir”. Não mais que de repente, acordou um dia em pleno Oriente Médio. “Foi como adentrar a Bíblia e fruir a variedade de trajes e costumes, a beleza estonteante da natureza e toda aquela gente com os olhos mansos de animais ferozes.”
O impulso de viagem em Xikito só na aparência foi pautado pela expansão ao exterior dos negócios da família, a revenda de tratores e equipamentos mundo afora. A atividade comercial em várias frentes foi apenas o pretexto para a realização do seu destino irresistível, que era correr mundo. Correr mundo não na condição do turista, que irresponsavelmente passa pelos lugares, mas do peregrino chamado a se procurar além do horizonte, a se procurar entre outros contornos de mundo e de humanidade. Viajar foi seu destino, isto é, sua vocação a ser cumprida compulsivamente, queira-se ou não. Viajar foi o caminho que ele encontrou para se transformar nele mesmo. Como Ulisses sulcando o Mediterrâneo em todas as direções.
Por isso, seu livro não se resume a simples “memórias de viagem”, como está no subtítulo. Xikito não escreveu “memórias”. Ele é autor e foi protagonista de outra classe de livro, que os alemães chamam de Bildungsroman (romance de formação). O protótipo clássico do romance de formação é da autoria de Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1796).
Em suas múltiplas peripécias pela Europa, os Estados Unidos, o Oriente Médio, recebido em tendas de beduíno, ou estagiando três anos em Beirute, então conhecida como a “Paris do Oriente”, dando com os costados no Irã, familiarizando-se com a África, trocando tendas por palacetes, representando papéis de vários níveis, empresário, negociador internacional, vendedor, caixeiro-viajante, curtindo momentos insuportáveis de solidão, o coração confrangido até encontrar aquela inglesinha que seria sua esposa, Ronnie, que lhe deu quatro filhas, rendido ao culto do pai herói e do avô sábio, o que assistimos são aos encontros e aos desencontros do mundo nos quais um jovem audaz e bem dotado forja seu caráter e sua personalidade.
Tristão de Athayde já observava que a vida no exterior, como a dos diplomatas, por exemplo, “costuma intensificar a personalidade dos fortes de caráter, assim como corromper os fracos”. Xikito pertence ao primeiro grupo. Longe de se corromper, vender-se ou falsificar-se, para empregar um termo lindo, hoje em desuso, acrisolou sua personalidade, isto é, depurou-se por meio de provações, dores, sofrimentos, mas também pelo amor à vida, pelo gosto da aventura, e pela transparência consigo mesmo num estado de espírito bem próximo daquilo que se chama felicidade.
De suas incessantes corridas pelo mundo afora, de sua experiência múltipla de países, paisagens e pessoas, na carreira febril e delirante de globetrotter, o que se decantou no fundo do seu ser foi a multifacetada experiência da vida, no encontro definitivo de seu centro de gravidade, “com forte poder de atração”, como diz ele mesmo.
Sim, Xikito parece pessoa de bem com a vida. Seu rosto sorridente, mas vincado e curtido, foi bafejado por aquele brisa perfumada da Ilha dos Amores, que chega ao litoral de sua Bahia querida. Mas antes de fruir dessa bem-aventurança ele teve que dar a volta “ao cabo das tormentas dele mesmo”, como diria o poeta (Paulo Bomfim).
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Gilberto de Mello Kujawski é escritor e jornalista