Em editorial publicado no domingo (1/9), o Estado de S. Paulo acusa o governo federal de ter agido com muita sofreguidão e pouco planejamento ao colocar em prática o programa Mais Médicos. Há, de fato, algumas evidências de que a implantação do programa exige explicações adicionais em pleno curso, principalmente em função das reações negativas estimuladas por dirigentes de entidades de classe. No entanto, não se pode dizer que uma iniciativa que vem sendo discutida há mais de um ano e meio, com participação de representantes das entidades do setor, seja resultado de improviso.
Apressado, mesmo, foi o editorial do Estado, escrito em cima de uma notícia publicada pela Folha de S.Paulo na sexta-feira (30/8), e desmentida no mesmo dia pelo UOL, portal da própria Folha.
A Folha havia noticiado em manchete: “Prefeitos demitirão médicos locais para receber os de Dilma”. O texto, no interior do jornal, dizia que, para economizar, os prefeitos de onze municípios estavam demitindo médicos brasileiros para ficar com os estrangeiros contratados pelo programa federal.
Só tinha um problema: sem ouvir o Ministério da Saúde, a Folha omitiu de seus leitores um detalhe importante do contrato – as cidades que tentarem fazer essa troca serão excluídas do sistema.
O termo de adesão e compromisso registrado na Portaria Ministerial nº 1369, diz, em seu artigo 11, parágrafo I (ver aqui):
“A participação dos Municípios e do Distrito Federal será formalizada com a celebração de termo de adesão e compromisso (…), que deverá conter, entre outras, as seguintes cláusulas: I – não substituir os médicos que já componham as equipes de atenção básica pelos participantes deste Projeto (…)”.
Portanto, se o interesse do jornal fosse, em algum momento, esclarecer seus leitores, algum repórter já teria lido essa portaria desde a implantação do programa, no dia 8 julho.
O texto original, que foi para o jornal de papel, havia sido publicado no portal UOL, do mesmo grupo, às 3h00 da sexta-feira. Para escancarar ainda mais a manipulação, basta observar que, ainda na sexta, às 12h30, um dos autores dessa reportagem trazia um desmentido cabal da manchete (ver aqui), informando que as regras do convênio tornavam impossível aquilo que o jornal afirmava estar acontecendo.
Pega na mentira
A manipulação se torna ainda mais canhestra quando se observa que, segundo o próprio UOL, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, havia esclarecido, no dia 14 de agosto, em audiência na Câmara dos Deputados, que os municípios não poderiam trocar médicos próprios pelos profissionais pagos pelo programa federal (ver aqui).
Ou seja, quando produziu o texto de domingo, o editorialista do Estado já sabia que o UOL tinha desmentido a manchete da Folha, que a portaria interministerial proibia a troca de médicos, e que alguns dos casos citados pela Folha eram falsos.
Quando fundamenta seu editorial de domingo numa mentira, o jornal mais tradicional do país atenta contra sua própria credibilidade, mas causa outros males ainda mais graves, como o estímulo a atitudes preconceituosas pelo Brasil afora contra os médicos estrangeiros.
A reação destemperada das entidades médicas contra o programa que importa profissionais de outros países não tem justificativa, mas pode ser explicada pelo excesso de zelo na defesa dos interesses corporativos. Mas, quais seriam as razões pelas quais dois dos mais importantes jornais do país se prestariam a publicar e comentar invenções como essa?
Na edição de domingo, quando anunciou a abertura dos arquivos digitais de seus 88 anos, o Globo também apresentou um texto no qual reconhece que errou ao apoiar o golpe militar de 1964. Trata-se de uma iniciativa importante, histórica, sem precedentes. Num dos trechos, o editorial afirma:
“O Globo, de fato, à época, concordou com a intervenção dos militares, ao lado de outros grandes jornais, como o Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil e o Correio da Manhã, para citar apenas alguns”.
O texto é parcial: os jornais citados não apenas apoiaram o golpe, mas participaram de seu planejamento e execução e fecharam os olhos diante da violência institucional que se seguiu.
Estamos em véspera do ano em que se completam 50 anos da eclosão da ditadura. Pode-se imaginar que, daqui a meio século, os jornais, se ainda existirem, haverão de corrigir outros erros. Por enquanto, o leitor da Folha fica apenas com o penoso esforço da ombudsman do jornal, que no domingo (ver aqui) fez malabarismos para não afirmar que o que houve foi uma grosseira manipulação.