Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A criminalização do anonimato

O sorriso de plástico que materializou controvérsias mundo afora será coibido nas ruas do Recife. A decisão, anunciada na quinta-feira (22/8) pelo secretário de Defesa Social de Pernambuco, Wilson Damázio, busca refúgio jurídico no Artigo 5° da Constituição Federal, sugerindo que todo anonimato pode ser vedado com o uso da força. Na prática, os policiais ganham o poder de solicitar às pessoas que se identifiquem. Mas, para os especialistas em Direito, tal autonomia fere a legislação, pois não existe qualquer norma impedindo a manifestação com rosto coberto – especialmente quando esta estratégia recorre à representação de valores universais.

A máscara de Guy Fawkes, que pontuou as manifestações de junho, funciona como uma espécie de vetor deste processo. Fawkes, em verdade, é uma figura controversa e aparentemente pouco inspiradora. Para a história oficial da Inglaterra, ele não passa de um traidor da pátria. O calendário ainda condena sua participação na Conspiração da Pólvora – movimento católico que pretendia assassinar o rei protestante Jaime I, em 1605. Em Londres, todo 5 de novembro (data do atentado frustrado), bonecos com o seu rosto são malhados na Noite das Fogueiras.

No terreno da cultura popular, entretanto, um irônico semblante defende a honra do “único homem que entrou no parlamento com intenções honestas”. A transformação do soldado especialista em bombas em símbolo democrático é um fenômeno recente, estimulado pela indústria cultural através do cinema. O que vemos nas ruas, portanto, não é exatamente a memória de Fawkes, mas a ressurreição de um grito contra a classe política.

A imagem-síntese

O apelo de V (personagem central da série de romances gráficos escrita por Alan Moore na década de 1980) supera a historiografia de Fawkes (sua própria inspiração) com a reformulação de alguns conceitos. A atualização do personagem às telonas, aliás, oferece paralelos relacionados a temas bem atuais, como a vigilância exercida pelo governo, a manipulação da mídia e a corrupção corporativa. A produção cinematográfica, inclusive, ambienta a trama em um novo cenário político. Enquanto a história original representa uma resposta à ideologia defendida pelo Partido Conservador britânico sob o comando de Margaret Thatcher, o filme dirigido pelos irmãos Wachowski aborda o conflito entre o liberalismo e o neoconservadorismo, ampliando bastante o horizonte de interpretações. Republicanos enxergaram uma propaganda contra a perspectiva de intervenção do Estado e anarquistas utilizaram a obra como peça publicitária. Quase todos os grupos políticos passaram a entender a mensagem como uma alegoria da opressão. E é neste sentido que a máscara ganha força simbólica, convertendo-se em uma perspectiva de expressão coletiva.

Na condição de defensor da liberdade, o carismático V se apresenta como uma vítima do sistema. E para viabilizar seu plano de vingança, ele evoca o rosto de um pária – um inimigo reconhecido e marginalizado. A máscara de Fawkes representa uma provocação; um protesto que denota sua intenção metodológica. V pretende depor o regime instituído com o uso da força – busca uma revolução e é com esta promessa que se converte em uma espécie de herói das “maiorias oprimidas”, numa concepção que se adapta perfeitamente às expectativas ocidentais. Quando extrapola os limites da ficção, entretanto, a figura emerge a função de símbolo e revela potencial de produto. V assume a contraditória forma de imagem-síntese, capaz de legitimar valores aparentemente universais e ainda gerar lucro.

Grupos de um rosto só

V ganhou as telas em 2006. E foi o filme, não a memória de Fawkes, que inspirou o movimento hacker Anonymous em sua manifestação contra a Igreja da Cientologia nos Estados Unidos, em 2008. Três anos depois, a máscara se tornaria símbolo dos movimentos Occupy (mobilizados em Wall Street, contra a desigualdade econômica e social, a corrupção e a indevida influência das empresas) e também o item mais vendido no Amazon.com – motivando, inclusive, uma reportagem da revista Time (“How Time Warner Profits from the ‘Anonymous’ Hackers”). As mobilizações presenciadas no Egito, e, posteriormente no Brasil, parecem um efeito cascata cuja referência se confunde entre os movimentos anteriores e as concepções do próprio filme. Quem lucra, de qualquer forma, é a Time Warner, detentora dos direitos do acessório.

Nas manifestações de rua, a pálida fisionomia de Guy Fawkes concebida por David Lloyd (coautor da HQ V de Vingança) materializa o caráter contraditório e dualista das reivindicações populares. Podemos dizer que uma legião de V’s luta por reformas administrativas, por vetos na Câmara e pelos bilhões diluídos em 20 centavos, enquanto exércitos de Fawkes apedrejavam prefeituras, saqueavam lojas e lançavam coquetéis molotov contra a polícia. Herdamos grupos de um rosto só, divididos em facções que lutam pela bandeira da qualidade dos governos, e precisam ser delimitadas estritamente por suas ações.

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Sidimar Rostan é jornalista, Bagé, RS