Para onde vai o jornalismo? Para onde vai a civilização? Diante de fatos tão surpreendentes quanto cruéis que se repetem, muitos se perguntam sobre o que o jornalismo deve priorizar e para que lado estamos indo como sociedade.
Alguns dos fatos mais relevantes do andar humano, nos últimos dias, são o dos olhos arrancados de um menino de seis anos na China para – como hipótese principal – venda clandestina de órgãos humanos, “valioso” negócio compartilhado por clandestinas redes internacionais. Entre os fatos, estão também o do bombardeio com armas químicas na Síria – parte de fabricação made in USA, país campeão mundial de assassinatos em massa – e que até agora os discursos convenientes atribuem exclusivamente ao governo daquele país do Oriente Médio e não a seus opositores.
De um lado, coloca-se em xeque valores universais constituídos a partir de um patrimônio comum, ainda que como ideal a ser buscado, produto da Modernidade, das Repúblicas, da ideia de Democracia contemporânea na era dos direitos civis. Muitos deles se esfarelam a cada minuto na aventura humana.
O jornalismo de referência, diante do papel que se atribuiu como contrapoder ou quarto poder, sucumbe, em parte, ao ritmo das redes sociais e a seus cliques, que expressam o próprio ritmo de uma humanidade que tem um futuro aberto, desde uma realização mais plena de determinados direitos propostos nos últimos 300 anos até o próprio aniquilamento do outro por simples imposição da vontade particular.
O papel de esclarecimento, proposto idealmente pelos fundamentos da instituição Imprensa, no limiar dos séculos 18 e 19, concorre com informações rápidas, voláteis, perecíveis e, em muitos casos, interessantes mas inúteis para o projeto humano coletivo e solidário, que hoje representa apenas uma parte – e talvez cada vez menor – dos habitantes do planeta.
Rentabilidade coletiva
Ao tratar de questões éticas atuais, Hugo Aznar chega a dizer que o jornalismo deve dar preponderância a grandes temas que estão no centro da sobrevivência humana e que a coloca sob risco: a questão ambiental, a violência, a pedofilia, as guerras, a xenofobia, o racismo, a intolerância, a informalidade do trabalho a qualquer custo, em qualquer coisa e em qualquer idade… e outros assuntos estratégicos que devem estar na agenda cotidiana e durável da cobertura jornalística.
A gradativa perda de valores universais e compartilháveis, produto de um convencimento histórico – e não necessariamente apenas da coerção legal –, aponta para algo a ser debatido imediatamente e com um mínimo de esclarecimento. Tal perspectiva dá ainda ao jornalismo clássico – ou aquele dos ideais mais democráticos – uma tarefa insubstituível. Tal como lembra Karl-Otto Apel, pela primeira vez está colocada concretamente a possibilidade de extinção planetária da espécie, seja pela autodestruição ambiental ou pelas guerras crescentes, com pesados armamentos de destruição coletiva, por exemplo.
E o Jornalismo, como se diferencia, no imediato, de forma massiva e planetária? Como articula o presente inteligível e compartilhável?
Para Aznar, as causas, contextos e soluções devem ser mais importantes até do que a sucessão enorme de fatos… e factoides… sendo estes apenas o ponto inicial – e apenas alguns deles, claro. A mídia e o jornalismo devem propor uma agenda contemporânea mais intensa e duradoura ao redor de determinadas temáticas, retomando-se alguns ideais do Iluminismo constantes em expressões como liberdade, igualdade, fraternidade. Aos fatos, devem ser acrescidas interpretações mais densas e complexas, debates mais duradouros e ângulos a partir dos valores mais universais.
O jornalismo de causas e com base em direitos universais como “cláusulas pétreas” morais teria um papel distintivo e qualitativamente melhor diante de outras informações que circulam com abundância. A interpretação voltaria a ser protagonista central no jornalismo de qualidade, o que exigiria múltiplas fontes e especialistas a partir de um espaço mais equilibrado e democrático para as versões.
Por isso, a agenda jornalística – e os traços distintivos profissionais –, diante dos caminhos de uma sociedade que parece chegar a um colapso perante valores universais conquistados no auge da democracia moderna, teria um compromisso com o esclarecimento controverso e lúcido, para que se possa saber o que se passa – coisa que outras profissões, pela natureza de suas ocupações, embora participem, dificilmente conseguiriam, em termos de tempo, dedicação, ritmo, técnica, estética e técnica, realizar nos diferentes suportes tecnológicos, do impresso à tevê, do rádio ao online.
A rentabilidade social de tal agenda estaria intimamente ligada à rentabilidade econômica mais duradoura e coletiva, sem o lucro imediato e a qualquer custo produzido no âmbito dos poderes econômicos e políticos e a partir de interesses meramente particulares.
Recuperação social
Obviamente que tal perspectiva não combina com grandes conglomerados midiáticos, seja porque entre os seus negócios estão também sociedades com bancos, empreiteiras e mesmo empresas que produzem armas para guerras, seja porque seguidamente defendem interesses ideológicos particulares simulados como de interesses de todos ou da maioria. Assim, o papel do Estado que representa a todos e defende garantias e direitos fundamentais, bem como cobra os deveres sociais de cada indivíduo, não exclui uma regulação que aponte para o esclarecimento controverso e democrático daquilo que se passa, exatamente para entender o que se passa. E com veículos de porte compatível, com redes que possa ser compartilhadas em termos de ideias, debates e argumentos esclarecedores, ainda que com análises e interpretações distintas.
A regulação da mídia, incluindo o Brasil, pelo critério relevância social e não rentabilidade econômica; pelo critério democracia participativa e não democracia oligopólica, parece tarefa importante para a recuperação social de uma democracia contemporânea que ficou muito longe da realização de seus ideais e que tende a se distanciar ainda mais daquilo que um dia foi um sonho coletivo da modernidade, que em certa época disseminou o conceito de cidadania.
Referências
AZNAR, Hugo. Ética de la comunicación y nuevos retos sociales. Barcelona: Paidós, 2005.
APEL, Karl-Otto. Teoría de la verdad y ética del discurso. Barcelona: I.C.E./Paidós: 1995.
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Francisco José Castilhos Karam é professor na UFSC e pesquisador do objETHOS